segunda-feira, 14 de janeiro de 2008


JOSÉ ARAÚJO FILMA CEARÁ MÍSTICO E FUTURISTA


(Diretor do premiado filme "O Sertão das Memórias" acaba de rodar o longa "As Tentações do Irmão Sebastião")

Ceará, ano de 2020. Num convento em ruínas, numa paisagem pós-apocalíptica, um noviço de uma congregação místico-messiânica é assombrado por imagens do martírio de São Sebastião e lembranças de sua violação, quando criança, por um exu.

Assim se pode descrever, sucintamente, o segundo longa-metragem de José Araújo, "As Tentações do Irmão Sebastião", que ele acaba de rodar no Ceará. Agora em fevereiro, Araújo vai a Roma para filmar durante dois dias as imagens que lhe faltam.

Quem viu o primeiro longa do diretor, o premiado "O Sertão das Memórias" (leia abaixo), sabe que não deve esperar de "As Tentações" uma narrativa linear, enquadrada em algum gênero convencional do cinema.

Como o filme anterior, o novo também mistura ficção e documentário e lança mão de uma linguagem fortemente alegórica, recorrendo principalmente aos signos da religiosidade popular.

"A linha dos dois filmes é parecida, só que agora eu elaboro mais essa linguagem de "transcendentalismo no cinema" (para usar a definição de Paul Schrader), em que as imagens são vistas como ícones religiosos", disse Araújo à Folha.

Outra diferença importante é o tamanho da produção. Embora o orçamento total do novo filme não chegue a R$ 1,5 milhão, o cineasta pôde trabalhar em condições menos artesanais: filmou em cores, em 35 milímetros e contou com atores profissionais.

Rodolfo Vaz, que interpreta o protagonista Sebastião, trabalhou no teatro com o grupo Galpão e com Gerald Thomas e estreou no cinema em "Outras Estórias", de Pedro Bial. O elenco conta ainda com Majô de Castro, Marcos Miranda e Auri Porto.

Como no primeiro filme, a fotografia é de Antonio Luiz Mendes ("Das Tripas Coração", "Ópera do Malandro", "Guerra de Canudos"). Na música, Araújo pretende contar de novo com Naná Vasconcelos, autor da trilha de "O Sertão das Memórias".

Fascinação pela umbanda


Em "As Tentações do Irmão Sebastião", o diretor voltou a trabalhar intensamente com a população dos locais das filmagens (Fortaleza, Itapajé e Castanhão). Foram utilizados quase 1.200 figurantes, além de quatro grupos folclóricos cearenses.

A preocupação maior do cineasta foi a de dar uma visão autêntica da umbanda: "Usei médiuns reais. Filmamos com a ajuda de um pai-de-santo".
Segundo Araújo, no Ceará a influência negra não é tão forte quanto a indígena, por isso a cultura local é mais marcada pela umbanda que pelo candomblé.

"São Sebastião é uma presença marcante na umbanda, como comandante dos caboclos. Corresponde a Oxóssi. Achei interessante investigar como o mito de São Sebastião chegou a nós e foi transformado pelo nosso sentido da sexualidade."

Quando adolescente, José Araújo estudou para padre católico, mas sempre foi "fascinado pela religião popular da umbanda", à qual dedicou o documentário "Salve a Umbanda" (1987).

Hoje, casado com uma indiana budista, acredita que "no fundo todas as religiões são parecidas".

"O Ocidente está redescobrindo a espiritualidade, mas já filtrada pelos EUA", diz. "O Dalai Lama é adorado em Hollywood."

Para Araújo, essa pasteurização da religião é análoga à padronização cultural: "A gente está ficando muito parecido com Miami. Mesmo nas cidades do Nordeste, as áreas de classe média são todas modeladas em Miami".
O cineasta resiste a essa tendência uniformizadora enfatizando em seu filme os signos da cultura regional, como o maracatu, a banda de pífaros e a umbanda.

O trânsito de Araújo entre o regional e o mundial se reflete nos apoios que seu filme recebeu.

Os principais investidores são regionais (Coelce, Telemar, Banco do Nordeste), mas apoiaram também o projeto a Secretaria de Cultura de Nova York, a Associação MonteCinemaVerità, de Locarno (Suíça) e a Guggenheim Foundation. A Videofilmes, do Rio, cedeu equipamentos.

"O meu filme é ambientado num futuro em que acabou a civilização e em que a busca de sobrevivência passa pelo misticismo sertanejo", resume José Araújo, um dos últimos artistas do mundo que ainda conferem valor positivo a esse misticismo. (José Geraldo Couto, Folha de São Paulo)

"Sertão" trouxe prestígio ao diretor


José Araújo surpreendeu o mundo do cinema em 1997, com o estranho longa-metragem "O Sertão das Memórias".

Filmado em preto-e-branco e contando só com não-atores (entre eles os pais do próprio diretor), o filme narrava de forma alegórica uma viagem ao interior do sertão, em que o quadro social atual (latifúndio, seca, exploração) se misturava a personagens e referências bíblicas.

Essa alegoria feroz, que misturava influências de Glauber Rocha e Pasolini, foi pouco vista no Brasil, mas conquistou prestígio internacional.
O filme ganhou o Festival de Toulouse (França), o prêmio da crítica em Berlim e o de melhor latino-americano no Sundance (EUA). No Brasil, recebeu a Margarida de Prata, da CNBB.

Teve distribuição comercial no México e na Suíça e foi exibido pelas TVs da Alemanha, Itália, EUA e México. Foi incluído numa lista de "150 obras-primas dos anos 90" da revista "Film Comment". Tudo isso com um orçamento de R$ 300 mil.

A trajetória de José Araújo é tão surpreendente quanto seu filme. Nascido em Miraíma, no interior do Ceará, estudou no Seminário Arquidiocesano de Fortaleza e cursou letras na Universidade do Ceará antes de ganhar uma bolsa para estudar cinema na San Francisco State University.

Nos EUA, trabalhou como técnico de som com cineastas como Francis Coppola, Percy Adlon e Gregory Nava e realizou o curta-metragem "Uma Família Mexicana, 14 Anos Depois" (1980).

Quando lhe perguntam quais são suas principais referências no cinema, José Araújo costuma citar Pasolini, Bresson, Glauber, Scorsese e Fellini. Apesar de suas imensas diferenças, todos eles são marcados, cada um à sua maneira, pelo cristianismo.

Não é surpresa. Araújo é um católico praticante apaixonado pelo sincretismo brasileiro, "uma adaptação nossa da expressão religiosa criada na Europa".

Além de "As Tentações do Irmão Sebastião", que ele pretende finalizar ainda no primeiro semestre e levar aos festivais internacionais deste ano, o cineasta prepara um documentário sobre Luiz Gonzaga.

Um comentário:

Karla Souza disse...

adorei essa postagem,sou miraimense conheço esse cara, o admiro bastante.Confeso que nao sabia que o filme "sertoes de memorias" havia sido tao premiado assim,e muito menos q havia tido tanta repercusao no mundo!
so é triste saber q no ceara ou mesmo no brasil esse filme nao tenha sido conhecido como deveria.É uma pena.