sábado, 5 de janeiro de 2008


A VOZ SERENA DE UMA CANTORA QUE ARREBATA


Quem sacia a fome do samba?
É necessário dialogar com agôgôs, cavaquinhos, cuícas e pandeiros. Essa cozinha sonora que retempera tímpanos e espíritos. Indivíduos e esperanças. Como se fosse um grande caldeirão disposto a requentar folias e quarteirões. Feijoadas e verões.
A música sambística que tem pátria, se espalha nesse imenso continente. Espalha palhas e renova o jeito de se jogar a ginga de quem desce do morro. A mania que só a morena tem de se enfeitar para a lua esperando o amor que mora por trás do enredo de conquistas e lutas. A faceirice dos jovens e os de mais idade que se lançam em transe por entre farras nas subidas e descidas dos suores noturnos.
É assim que o samba se dança. Sim, porque quem samba, sabe que a senha é sonhar. Samba com sonhos, de jeito aberto, com passos e aquarelas. Pois onde pinta preto e pobre, pinta a madame e o esnobe.
Assim Roberta Sá se mostra, como uma reluzente voz dessa imensa nação. Decidida a entrar na seleta passarela onde reinam Cartola e Jamelão, a divina Elizeth e os samba-canções. E é assim também que Roberta se encanta ao redor da jovem-guarda do samba, que responde com seus desejos e calmas à história de uma escola que se fortalece.
Roberta é cantora potiguar que mora desde os nove anos no Rio de Janeiro. Ela tem consciência da raiz do samba do morro. O show dela abrindo as comemorações dos dez anos do projeto “Seis e Meia”, confirma a personalidade e o domínio dela no palco.
Requebrando a poesia do povo, Roberta parece se confessar para a platéia. Além do que, o encadeamento entre uma música e outra é perfeito; existindo dessa forma, uma refinada cumplicidade no repertório, onde Roberta desfila sambas mais sambas e outros sambas.
É curioso notar essa desinibida paixão de cantoras jovens brasileiras pelos ritmos de tradição. Assim, tendo o espanto como início, o samba na voz de Roberta ressuscita o felling de uma declaração de amor, a fotografia urbana de uma cidade maravilhosa, o pileque da quitanda da esquina do subúrbio carioca e a fanfarronice de beijos e súplicas que no jardim das escadarias do Cristo pede passagem.
E existe sim, com prazer e competência, um elenco de novos compositores comprometidos com esses negros batuques, como se fora uma interminável lista de linhas e mais linhas de declarações de gírias, de passeios pelos encantos de décadas; onde o suspiro do guarda, os goles no Maracanã, a pedida para o Leblon ou as subidas nas favelas com suas imensas fivelas, é a precisa confirmação de um breviário do alumbramento, expiação das doses de chopp ou da malemolência da malícia do requebro da mulata isoneira.
Acho pois, que é necessário se pensar mais sobre essas escolhas como parâmetro de uma poesia que atinge a alegria incontida. Ou talvez, seja assim mesmo, sem muita explicação. Pois a filosofia e felicidade do morro e o renascimento das suas origens, faz parte da grande bondade que existe nos corações dos que declaram o seu amor pelas rodas onde reinam batucadas e pileques, improvisos e paixões.
Assim, ilustrando o imprescindível dos negros batuques, a cuíca é servida como ícone do samba, retemperando e abrindo mão da maciez do seu couro (e isso é real), ficando dessa forma, espessa feito a textura de um instrumento frio e sem conexão. Igual a estilização de inúmeros grupos que não hesitam em escolher a estética da superficialidade sonora e letrística como referência dos seus trabalhos.
Sendo assim, é que Roberta com sua voz, com sua música, com a sua escolha, sabedora do valor que sua voz tem, sabedora e consciente do papel que desempenha no palco, quando desfralda a bandeira do mergulho nas águas que limpam línguas e olhos; é que ela é capaz de entender que o mundo do samba é um moinho, que o mundo do samba é um espelho que espalha preces e canções.
Pois quando se pega talher e prato e é servido esse som, a fome do morro se desenlaça. As mãos, em vez de fazer a viagem de saciar a fome dos que com feijão e farofa se multiplicam (elas, as mãos), se dispõem a exercer e a escrever uma história repleta de interfaces onde os brincantes de franciscanos rostos, são salvos pelos sons da nossa ancestralidade: poeira, poesia e percussão.
O samba, assim, ancião e de longas costas, é servido como farol de alforria e festa, como celebração do coletivo, incansavelmente distribuído entre palmos e palmas. Entre namoros e a gravidez do mundo. Pois, sendo assim, as gerações que procederam todas essas fermentações epidérmicas, reconhecem o real valor do despreendimento do samba que não se samba só, e validaram a sua história através da cultura de atabaques e tribos de simpatizantes que surgiam como que para celebrar os ouvidos do mundo.
É como se fosse um grande terreiro com Roberta no centro, confirmando a sua grande luz. É como se fosse a forma do samba quando chega a hora de se expressar e de saciar a mente de quem deseja a cozinha dos breques e dos sonoros temperos suburbanos. E tudo se eterniza. Pois o pra(n)to do canto quando anoitece por cima de jejuns e provações fica mais belo. É por inteiro. Uma grande esteira onde cabem foliões e boêmios e a janela da favela que renasce a cada olhar.
Roberta Sá é sã. Com o seu ritmo. Com os seus passos e pistas. Ela é porta-voz e porta-bandeira. É luz e estandarte de avenidas e botecos.
Ela descerra e encerra a poesia de quem descreve as malandragens dos breques de becas e becos. Ela encera com os seus pés, as descidas e subidas do morro, a maciez de um sorriso e a incompletude de um giro à esmo.
Roberta, como potiguar e carioca, une o caviar do coco com o samba de roda, o carro da madame com a jangada do visionário pescador. Une o sumo da carne de caju com a nascente da cor e do sabor das paixões elétricas e efêmeras. E une os versos de um samba que se forma por entre palhoças e as troças de uma avenida que escolhe partituras e personagens, remadores e profissionais do asfalto.
Ela, como boa carioca, vai de cetim a festa que foi convidada. Compartilha novas canções sem se esquecer de cantarolar batucando na frigideira as lembranças da sua terra Natal. Ou mais que isso: o farfalhar dos coqueiros de Ponta Negra nos seus ouvidos. Ou o morro do Careca que a recebe de braços abertos.
Sendo Roberta hípica e luz que flui, ela compreende perfeitamente que o som que sai da gruta do Nordeste brasileiro (que é ela), é renovador. O som que emerge, que se mostra, como um vendaval de zabumbas, pandeiros e ganzás; assim como no Rio via cuíca e tamborim, é o som que se projeta. De um baticum que tem tudo a ver com descobertas e lembranças. Paixão e promessa. Ziriguidum e lundum. E com as suas castas vocais que prenunciam a sua declaração de amor pela multidão grávida pelas suas presenças.
A presença, a revelação e a força de grupos jovens nordestinos, tais como “Tambores Falantes”, “Os Vate”, “As Bastianas”, produções recentíssimas com vigor e competência sonora inquestionáveis.
E é nessa geléia real que Roberta arrebata. Arrasta a sua sandália maravilhosa que forma e tece e teia de quem procura pela perenidade.
E como tempo que não passa, Roberta com sua voz se deixa levar por entre murmúrios e confissões. Por entre porta-bandeiras e alegorias que declaram o seu amor pelo samba só dela, e pela vida que pede passagem, e que sobrevoa os lábios dos corações apaixonados. E pela cadência do samba que redime os inflexíveis e inconfessáveis cardápios românticos.
Assim o samba é. Como bem Roberta sabe. Disposta a ocupar os sorrisos e as pulsações da aceitação incontida. Pois Roberta é como uma Maria moderna, sem perder a classe da conquista e da simplicidade. Nobre para os notívagos e sensíveis corações urbanos e madrinha das súplicas dos subúrbios nordestinos. Sensível como as dores dos amores irretocáveis. E vasta como uma nuvem que multiplica os passos de quem pisou na avenida ao som da sua voz serena e eternamente vitoriosa.


Cgurgel

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