domingo, 20 de janeiro de 2008


FLÁVIO DE CARVALHO
Suntuoso, lúbrico, dramático

de Denise Mattar

Flávio de Rezende de Carvalho nasceu a 10 de agosto de 1899 em Amparo da Barra Mansa, Rio de Janeiro. Seus pais, Raul de Rezende Carvalho e Ophélia Crissiuma se orgulhavam de sua ascendência aristocrática, que incluía o barão de Cajuru e o conde de Arcos.

Aos doze anos foi estudar na França e a seguir na Inglaterra onde se formou engenheiro civil, retornando então ao Brasil. Tinha 1,90 de altura e porte atlético. Era ateu convicto e um ferrenho celibatário - cercado de belas mulheres. Seu temperamento rebelde e extravagante, aliado à educação de um gentleman, sua timidez escondidas atrás de atitudes histriônicas e provocativas, e sua produção artística sem concessões, fizeram com que ele selecionasse os mais curiosos epítetos e classificações: romântico, pintor maldito, surrealista tropical, antropófago ideal, performático precoce, javali do asfalto, comedor de emoções...

Flávio foi amigo de algumas das personalidades de seu tempo, especialmente as mais polêmicas como Oswad de Andrade, Di Cavalcanti, Assis Chateaubriand, Carlos Lacerda, Geraldo Ferraz, entre outros. Uma lista de suas mulheres seria interminável, mas podemos citar Cacilda Becker, Inge de Beaussacq, Maria Kareska e Eva Harms.

Colecionou inimizades, e, num Brasil ainda tão provinciano, foi muito discriminado por suas atitudes frontais contra o clero e a religião.

Sua formação internacional permitiu que tivesse contato com artistas e intelectuais como Ben Nicholson, Barbara Hepworth, Henry Moore, Arne Hsek, André Breton, Herbert Read, e que pudesse trazer alguns deles ao Brasil.

Visto como comunista, Flávio era apolítico. Sua viagem por diversos países da Europa, em 1934, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, fez com que ele se desencantasse da política e visse nos movimentos mundiais apenas razões psicológicas.

Sua casa na fazenda Capuava, assim como outros ateliês e residências anteriores, era um ponto de encontro da intelectualidade, onde ele recebia de maneira elegante, informal e às vezes escandalosa para os rígidos padrões da época. Sobre Flávio de Carvalho já foi dito que a pessoa ofuscou o artista, que seu trabalho é disperso e que suas diferenças facetas são incoerentes. Entretanto, a pessoa e a obra de Flávio de Carvalho são inseparáveis, e um fio condutor claro norteia toda a sua produção em textos, animação cultural, experiências, arquitetura, dramaturgia, desenho e pintura: "o desenvolvimento da percepção psicológica e da percepção mentalista do mundo".

Um arquiteto quase virtual

A aparição de Flávio de Carvalho no cenário de artes do Brasil se fez através de sua ruidosa participação no concurso do Palácio do Governo, em 1927.

O estranho projeto se destacou entre os concorrentes neoclássicos e uma bem urdida campanha jornalística, organizada em acordo com Geraldo Ferraz, tornou Flávio muito conhecido, aproximando-o dos modernistas, especialmente de Oswald de Andrade.

Como "delegado antropófago" ele apressou a conferência "A cidade do homem nu" no IV Congresso Panamericano de Arquitetos (1930), causando revolta na comportada audiência.

Participou de Vários concursos, sem ganhar qualquer um deles, e tornou-se um dos mais famosos arquitetos do Brasil. Entretanto, apesar de Ter criado muitos projetos, apenas dois foram concretizados; ambos em empreendimentos seus e às suas custas: o conjunto de casas de Al. Lorena e a fazenda Capuava. O conjunto de casas à Al. Lorena (1938) foi habitado por moradores como Pagu, Frank Smith, Geraldo Ferraz, Georg Przyrembel, Leônidas Autuori e o próprio Flávio.

Acompanhando as casas "frias no verão e quentes no inverno" havia um "modo de usar" no qual o arquiteto dava conselhos personalíssimos aos moradores: "aconselha-se o uso de móveis que ocupem pouco espaço pois são mais estéticos, confortáveis e higiênicos. Infelizmente os fabricantes de móveis (pseudo-modernos) ainda não compreenderam o problema do espaço da vida de hoje".

A casa da fazenda Capuava (1939), construída como uma mastaba, tinha um grande salão sem divisórias, cortinas coloridas ondulantes, banheiros e cozinha de alumínio, uma lareira com vapores coloridos, e uma piscina iluminada por luzes vermelhas: "o norteamento foi exclusivamente poético. A concepção de toda casa é um produto puro da imaginação, tentando criar uma maneira ideal de viver. A poesia é, aliás, indispensável à criação arquitetônica como fator de elevação do homem. As cortinas do salão foram estudadas em largura, comprimento e peso específico para que possam balançar ao vento para fora e para dentro, ao ritmo eventual da música. As aberturas foram idealizadas para fazer com que - usando a frase de Mário de Andrade - 'a paisagem, as nuvens, a luz, o ar entrem dentro da casa'. "

Para Flávio de Carvalho a arquitetura devia ter um valor "psíquico", ser voltada para criar novas formas de viver e pensar.

"Pesquisar a alma nua, conhecer a si próprio".

Ignorando durante anos nos estudos sobre a arquitetura no Brasil, Flávio de Carvalho teve seu trabalho analisado, de forma inteiramente diversa, por Rui Moreira Leite, Americo Ishida e Luiz Carlos Daher.

Um caso de polícia

"Palpar psiquicamente a emoção, provocar a revolta para ver alguma do inconsciente, este era o objetivo de Flávio de Carvalho ao realizar sua "Experiência nº 2", um conceito que pode ser estendido a toda sua ação performática.

Atravessando em sentido contrário a procissão, com seu boné de veludo verde na provinciana São Paulo de 1931, Flávio teve a oportunidade de ver muito de perto as conseqüências de uma multidão enfurecida, e no seu quase linchamento ele pôde "palpar psiquicamente" uma nova emoção - o medo.

O livro, que relata e analisa a experiência, as reações da procissão e da assistência, e suas próprias sensações, foi dedicado pelo autor a "S. Santidade o papa Pio XI e a S. Eminência D. Duarte Leopoldo".

O evento deu ao artista uma aura diabólica - que ele cultivava -, e iniciou sua presença nas crônicas policiais.

Os anos 30 foram de intensa atividade para Flávio de Carvalho em várias áreas. A fundação do CAM - Clube de Artistas Modernos (com Di Cavalcante, Gomide e Carlos Prado) revelou um animador cultural capaz de criar fatos novos e significativos. Um espaço onde se viu e discutiu artes plásticas, música, antropologia, sociologia, política, literatura e psicologia, com participantes como Käthe Kollwitz, Camargo Guarnieri, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Jorge Amado, e os psiquiatras Dr. Durval Bellergarde Marcondes e Antônio Carlos Pacheco e Silva.

"Em 1933, São Paulo é chocada por uma exposição inusitada - desenhos de criança e loucos - organizada por Flávio de Carvalho no quadro das manifestações polêmicas do Clube dos Artista Modernos. (...) Sem querer chegar a afirmar que o Brasil é o pioneiro neste tipo de pesquisa, torna-se necessário lembrar, no entanto, a polêmica de Flávio de Carvalho, uma vez que pelo menos em duas frentes ele antecipa a posterior campanha de Dubuffet em prol da arte não-cultura: quando afirma 'a importância psicológica e filosófica da arte do louco e das crianças', quando se opõe às 'paredes opressoras e asfixiantes da Escola de Belas Artes que, corrigindo e polindo, procuram impor aos alunos a personalidades freqüentemente mofada e gasta dos professores'."

No mesmo ano Flávio de Carvalho cria o Teatro da Experiência encenando O bailado do deus morto, "uma obra filosófica,... que mostra as emoções dos homens para com o seu deus". Era um espetáculo experimental de teatro/dança, com texto, cenários, coreografias, figurino e iluminação de Flávio. Os atores usavam máscaras de alumínio e se moviam de forma expressionista.

Totalmente inovador, o bailado causou escândalo e o teatro foi fechado pela polícia. De nada adianta os manifestos repúdio à ação em São Paulo e no Rio, assinados pelos princípios intelectuais da época. O teatro interditado teve como triste resultado o encerramento do CAM.

Em 1934 Flávio de Carvalho inaugurava, com grande sucesso, sua primeira exposição individual, que logo a seguir seria fechada... pela polícia. Cinco obras são apreendidas sob alegação de indecência, imoralidade e atento ao pudor. Toda a intelectualidade protesta: "A política paulista está caindo no ridículo"; "um escândalo artístico-policial".

Desta vez, porém, Flávio consegue a reabertura da mostra e ganha na justiça o direito de um indenização.

Os anos 40 serão marcados pela realização da "Série trágica". A morte encara de frente. Uma catártica "emoção palpada" - e uma grande rejeição pública.

Em 1956, como conclusão da série de artigos "A moda e o novo Homem", Flávio faz o famoso lançamento de seu "traje de verão" - o New Look. A passeata pelas ruas da cidade de São Paulo reuniu a multidão heterogênea num mesmo olhar espantado. Flávio utilizou todos os veículos de comunicação da época, incluindo a iniciante televisão, e multiplicou a penetração de sua performance. Jamais um artista atrairia tanta atenção; mais uma vez ele conseguira manipular "a alma coletiva".

Um teórico mal comportado

Em seu livro Os ossos do mundo (1936) Flávio de Carvalho afirma que os arqueólogos e os psicólogos devem ser mal comportados; e é exatamente o que ele faz em seus textos, onde transmite ao leitor suas teses, "discutibilíssimas" segundo Sérgio Milliet.

Os temas abordados são apenas um ponto de partida, quase um pretexto para divagações, reflexões e análises tendo como base a interpretação extremamente pessoal que Flávio fez das teorias de Freud Darwin.

Os ossos do mundo, com prefácio de Gilberto Freyre, foi encomendado como livro de impressões de viagem. Seu conteúdo polêmico foi recusado pela editora e finalmente publicado pela editora Ariel. Foi um sucesso absoluto de vendas.

Sylvio Rabello escreveu uma crítica ao livro que pode ser estendida a toda sua produção teórica: "as coisas têm para o Sr. Flávio de Carvalho um sentido estranho, como se os seus olhos penetrassem mais fundo na intimidade delas. Explica os fatos apanhando, aqui e ali, fios sutis e desapercebidos pela maioria dos homens e, quase sempre, as suas explicações são de um imprevisto que faz pensar numa possível morbidez de escritor. É que estamos habituados a pensar como todo mundo. As nossas idéias não são nossas: são idéias servidas e resservidas por todos. E idéias diferentes arrepiam e chocam, como se fossemos perder subitamente o equilíbrio. O Sr. Flávio de Carvalho está sempre a dar empurrões na rotina e no lugar comum, a fazer-nos perder o equilíbrio..."

Nenhum comentário: