sábado, 12 de janeiro de 2008


ÁRIDO GROOVE

Por Ramiro Zwetsch

O Brasil tem dessas coisas: suas entranhas escondem trincheiras de arte tão autêntica que, vez por outra, é preciso alguém desvendá-las para além de suas fronteiras geográficas. Pois se não fosse o projeto do músico Siba, ex-integrante do Mestre Ambrósio, a música da cidade de Nazaré da Mata corria o risco de não ecoar quanto merece. "Toda Vez Que Eu Dou Um Passo / O Mundo Sai Do Lugar" é seu segundo disco em parceria com a banda Fuloresta – formada em 2002 por veteranos das zoadas de frevo, coco, maracatu e ciranda da região pernambucana.

O resultado é precioso: guiadas basicamente por um toque hipnótico de percussão, poesia cantada em timbres puros e um balé de todos os sopros (trumpete, tuba, sax e trombone), as doze faixas conduzem o ouvinte por um rasante sonoro e inspirador pelas paisagens áridas do norte de Pernambuco. A imaginação voa mais alto ainda com o projeto gráfico assinado pelos grafiteiros Os Gêmeos – uma outra obra de arte, um capítulo à parte dessa jóia audiovisual completa.

O disco tem participações dos guitarristas Lúcio Maia (Nação Zumbi) e Fernando Catatau (Cidadão Instigado), da cantora Céu e de Beto Villares e Arthur de Faria (pianos). A banda Fuloresta é formada por: Siba (voz e percussão), Biu Roque (percussão e voz), Mané Roque (percussão e voz), Zeca (percussão), Roberto Manoel (trumpete), Galego (trombone), João Minuto (sax tenor) e Bolinha (tuba).

Qual a diferença desse disco em relação ao anterior ("Fuloresta do Samba", 2002)?
Siba: Eu busquei uma mudança no trabalho. Foram mais de quatro anos entre um disco e outro, então foi um processo longo em vários sentidos. Houve uma busca musical da minha parte e nós, do grupo, passamos esse tempo todo viajando junto, adaptando a linguagem para o palco. Também busquei um aprofundamento no meu trabalho de texto. São vários caminhos paralelos de busca. Só não sei se eu alcancei todos objetivos.

Na parte musical, como aconteceu essa evolução?
Não uso a palavra "evolução", é uma busca mesmo. Busquei uma musicalidade mais aberta, eu abri a paleta sonora da orquestra, com tuba, sax, trumpete e trombone. Isso abriu as possibilidades de harmonia. No primeiro disco, com uma orquestra mais limitada, eu tinha um ponto de parada. Dessa vez, eu abri um leque harmônico maior. Outra coisa que contribui para essa abertura é uma participação maior de pessoas que não estão ligadas diretamente à música da Zona da Mata. Acho que isso também ajudou bastante.

As letras dão a impressão de serem muito inspiradas em literatura. Você leu muito nesses quatro anos?
Esse processo é mais intuitivo. Meu texto é muito baseado na prática da poesia rimada e eu costumo escrever dentro da mesma lógica dos poetas de rua do nordeste. É rima, métrica e oração. Ao longo desses anos, principalmente quando voltei definitivamente para o Pernambuco, me aprofundei muito na poesia de rua. (Siba retornou ao estado em 2002, após temporada de sete anos em São Paulo). É muito mais prática do que pesquisa. A gente lê, vê televisão, ouve rádio, escuta a conversa das pessoas e se apropria disso na hora da criação. Nesse disco, minha poesia é muito mais direta porque, dentro dessa tradição, é preciso alcançar as pessoas imediatamente. Na rua não tem palco nem luz, muitas vezes você canta durante horas. Eu sempre vi muito potencial nessa linguagem mais direta que, não necessariamente, significa falta de conteúdo.

Há alguma influência de hip hop nessa busca de uma linguagem direta?
Eu tenho muito pouco contato com o hip hop. Tenho proximidade com muitas pessoas que fazem rap, mas o contato estético é muito pequeno. Minha bagagem maior é do rock, escutava muito até os 15 anos. Depois passei a ouvir muito jazz e música africana. Mas eu conheço a turma, né? Rappin’ Hood, Parteum...

Mas essa é uma associação possível, não?
É claro que é possível estabelecer associações. Uma coisa em comum é justamente o fato de que é uma poesia que precisa ser direta, precisa atingir as pessoas diretamente. É para ser cantada e ouvida, não lida. Mas esteticamente são muito diferentes. A poesia do nordeste, como te falei, é muito baseada em rima-métrica-oração. O hip hop é mais aberto e esses dois mundos estão cada vez mais distantes. Algumas pessoas do hip hop buscam uma aproximação, até para alcançar uma identidade brasileira, e eu acho que a poesia do nordeste pode conferir uma função interessante nessa comunicação. Um ponto que atrasa essa troca é o fato de as pessoas se guiarem muito pelos estereótipos. “Hip hop é uma coisa urbana, uma coisa atual. Poesia nordestina é uma coisa de raiz, rural...” Pessoas ligadas à poesia nordestina podem ver o rap como algo agressivo, assim como como algumas pessoas do hip hop podem ver a poesia do nordeste como uma arte comprometida, porque não tem o elemento de contestação. Tudo isso atrasa essa comunicação mas ela é possível e alguns artistas já têm feito isso.

Uma curiosidade desse disco é que você não toca rabeca em nenhuma faixa...
Todo mundo dá mais peso a isso do que de fato isso tem. Eu já sabia que a rabeca não tinha um peso grande nesse projeto, os estilos que tenho praticado não têm rabeca. Quando eu canto na rua, eu não canto com rabeca. E também não nasci com ela embaixo do braço, é só um instrumento. Mas eu continuo trabalhando com ela, tenho dois trabalhos mais voltados para as cordas que pretendo concretizar ainda em 2008. Esse ano preparo um CD com Roberto Corrêa, grande violeiro, uma coisa mais baseada em viola e rabeca, bem acústica. O outro trabalho é um projeto-solo meu, também com viola e rabeca, mas mais elétrico.

Como é trabalhar com harmonias basedas apenas em instrumentos de sopros? É um desafio ou o som sai naturalmente, por conta da experiência dos músicos com esses ritmos presentes no disco?
Não foi tão natural assim, é um trabalho grande de formação de um som. Embora possa soar tradicional para boa parte das pessoas que ouvem o disco, você não encontra isso no trabalho de rua do nordeste. É mais trumpete e trombone, verso e resposta. Esse lance de orquestra que a gente vem buscando é um trabalho bem pessoal de desenvolvimento de arranjos e tal. Aqui pra região, o trabalho não tem nada de tradicional e traz um dado musical novo.

Quais são os ritmos que aparecem no disco?
Não tem nenhum maracatu nesse disco embora ele seja um fato central no meu processo criativo. É a mola propulsora do meu trabalho de texto mas, curiosamente, não entrou nenhum no disco. Mas nos shows a gente sempre toca. O disco tem basicamente ciranda, coco e frevo.

Pode descrevê-los brevemente para quem não os conhece?
Ciranda é um ritmo mais lento, ligado à dança de roda na rua. Uma ciranda pode durar quatro ou cinco horas e tem um estilo de poesia muito próprio. O coco de roda também é um ritmo de dança mas, em geral, se dança solto. Geralmente não tem orquestra, isso é uma coisa que a gente vem desenvolvendo no Fuloresta. Coco é mais percussão, voz e poesia. Ritmicamente, o frevo que a gente faz é parecido com o frevo de Recife. Na parte de texto, nosso frevo é diferente. O de Recife, normalmente tem refrão. A gente chama o nosso de “frevo rimado”, porque é muito baseado em associação de estrofe.

E o ritmo é mais sincopado, né?
Sim, é mais pra cima, acelerado, de carnaval mesmo.

E como se deu essa aproximação com Os Gêmeos?
Essa é uma história interessante porque quando as pessoas perguntam sobre isso, querem encontrar toda uma estratégia de marketing. Mas não tem nada disso. Os meninos conheceram as músicas do primeiro disco em CDs que eles ganharam do Rodrigo Brandão, do Mamelo Sound System, e do Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi. Eles se identificaram muito e ouviam o disco quando estavam montando aquela primeira exposição na Fortes Vilaça, em São Paulo. Depois, no final do ano retrasado, o Itaú Cultural fez um convite para gravação de um DVD com cenografia dos Gêmeos -- e são as pinturas daquele trabalho que compõe o encarte do disco.

E essa aproximação fez com que eles pintassem alguns muros de Nazaré da Mata, né? Como morador da cidade, como vê aquelas pinturas como parte da paisagem?
Nessa época, levamos todo mundo pra Nazaré para gravar um making of do DVD. Eles também foram e conseguiram quatro muros pra pintar. É uma comunicação interessante. Eles sintonizaram uma linguagem gráfica que tem muito a ver com o nordeste rural. Para eles também foi muito legal: eles encontraram pessoas que já viviam na imaginação deles e uma cidade virgem. Foi a primeira cidade que eles pintaram que não tinha nenhum grafitti até então.

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