quinta-feira, 10 de janeiro de 2008


AMÉRICO RODRIGUES

O Despertar do Funâmbulo


A história da poesia sonora divide-se entre quem usou a palavra na sua integridade (vejam-se os Futuristas italianos e os Dadaístas) e quem a violou, aniquilando-a e reduzindo-a a pura papa fonética (vejam-se os Futuristas russos e os Letristas, até aos produtos típicos da poesia sonora da era do pós guerra). Ora, o caso de Américo Rodrigues é, sem dúvida, interessante por múltiplas razões. Diga-se desde já que o seu trabalho se enquadra, sem dúvida, dentro do segundo filão.
Mas há que ter muita atenção ao avaliar a fundo o seu esforço sonoro, porque é de facto um verdadeiro esforço. Basta ouvir os seus CDs e ver a sua performance para compreender que o seu é um verdadeiro esforço corporal. Não estamos perante exemplos de linguagem triturada, ele não tem necessidade de partir da linguagem, não precisa. Neste sentido podemos dizer que amplifica algumas intuições já tidas por Hugo Ball ou Raoul Hausmann, no início do século: o potencial é bucal.
E, de facto, Américo Rodrigues mostra a musculatura da boca, todos os ruídos que o aparelho bucal pode fazer. É o próprio corpo que fala a sua linguagem primitiva, numa situação pré-babélica, onde o tudo e o nada se tocam. No seu caso a parte física da voz é o próprio corpo. A sua procura é canalizada para os extremos de um Jaap Blonk ou de um Nobuo Kubota e para o já feito por um Paul Dutton ou Valeri Scherstianoj. E, deste ponto de vista, está perfeitamente legitimada. É de notar que o seu trabalho tem uma ponta de agressividade que, em nosso entender, é necessária para desenvolver um forte impacto no ouvinte-espectador.
Estamos, por fim, felizes que da terra lusitana, através de um trabalho raro de poesia sonora, tenha finalmente nascido um poeta semelhante que desdobra a poesia sonora, de um modo tão puro e tão original, sem suportes electrónicos (como era o caso da vídeo-poesia de Melo e Castro) e sem suportes visuais (como nas performances de Fernando Aguiar). Na verdade Américo Rodrigues entrega-se ao poder da sua garganta, sem truques nem enganos, para encantar, estontear e seduzir o público.

O trabalho de Américo Rodrigues, recusando esgotar-se em fórmulas simples, continua a afirmar-se como trabalho poético, alquimia de cadências onde palavra e voz sempre se cruzam. Este cruzar é, de resto, bem patente nas persistentes interferências entre a sua criação impressa (onde tantas vezes parecem anunciar-se já direcções presentes, mormente pelas temáticas centradas no orgânico, no gutural, no grito e na(s) voz(es) do corpo) e a idêntica matéria verbal que circula na sua poesia sonora de forma reconhecível... Creio ser este o momento ideal para sublinhar o ganho expressivo que decorre das específicas circunstâncias de produção a que a poética sonora de Américo Rodrigues se submete, isto é, as que resultam da contaminada relação com as linguagens do palco e as da música... Em Portugal, Américo Rodrigues ocupa assim um lugar que bem pode e bem merece ser apontado como único. Sem reproduzir fórmulas, antes procurando sempre reinventá-las... É hora de ouvir «O Despertar do Funâmbulo».
Metamorfoses vocais, improvisações musicais, materializações na e pela voz, inquietações poéticas, estilhaços sonoros. De tudo isto e de algo mais é feito o corajoso primeiro disco de poesia sonora editado em Portugal... Américo Rodrigues, neste seu disco de estreia, (...) atira-se, sem pudor, à escalpelização estética das possibilidades daquilo a que ele chama de «vulcão aceso na garganta», no fundo, o instrumento "primordial" e histórico do homem: a voz. E neste sentido, Américo revela-se um notável "intérprete da voz". O registo «O Despertar do Funâmbulo» é pois um corolário de intrincados jogos semânticos, de erupções viscerais, de intensidade (dramática, até) no "sentir" e no "dizer" a poesia, de libertação da linguagem...

Américo Rodrigues tem-se destacado (...) pela forma invulgar como associa a poesia fonética com o canto improvisado. Nesta estreia discográfica, quase só constituída por temas interpretados ao vivo, encontramo-lo em diversos contextos instrumentais, proporcionados por músicos como Gregg Moore, Nuno Rebelo, José Galissa, Jean François Lézé e José Oliveira, para só mencionar os indubitavelmente mais interessantes. A abrangência da opção é um dos (muitos) pontos fortes do trabalho, sempre balizado entre a visceralidade de um Phil Minton e a glossolália de Jaap Blonk.

Trata-se do primeiro disco de poesia sonora editado em Portugal. O disco, para além de temas a solo, inclui parcerias do autor com Nuno Rebelo, Gregg Moore, Jean-François Lézé, Nirankar Khalsa, Élia Fernandes, José Galissa, Rodrigo Pinheiro, Patrick Brennan e José Oliveira.Alia a ginástica vocal segundo técnicas herdadas do inglês Phil Minton com poesia fonética.O poeta ultrapassou o desafio de desvendar a sonoridade da poesia, e depois de muitos anos de trabalho, apresentou finalmente o seu sonho antigo.

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