quinta-feira, 10 de janeiro de 2008


IT'S ONLY ROCK'N'ROLL



A figura emerge do lobby do hotel saída direto de uma outra dimensão onde os anos 60 nunca terminaram. Calça de tricô
estampada com a bandeira dos Estados Unidos, camiseta preta por baixo de uma camisa multicolorida, feita com um tecido que lembra as cortinas da casa da minha avó. Nos pés, All Star branco surrado. Nos braços, pulseiras de bronze. O cabelo, arrepiado, lembra um pouco o do guitarrista Ron Wood, dos Rolling Stones. Ou mesmo de Rod Stweart, o eterno fanfarrão do pop. Uma caricatura rock'n'roll que até combina com a decoração do lugar, uma mistura eclética de arte amazônica com estátuas clássicas e espelhos emoldurados em entalhes rococó. Eu, que fui até lá entrevistá-lo por conta de um show em Belém, fico parado olhando o sujeito sem sabero que fazer.

Serguei está animado e chega logo falando do Museu do Rock, um
empreendimento dedicado aos anos 60 que mantém na sua casa em
Saquarema, litoral do Rio de Janeiro. Confinado em seu santuário - que ele abre para visitação pública, das quatro da tarde às nove da noite, já que acordar antes do meio-dia, em suas próprias palavras, lhe faz "passar mal" - ele esquece que, lá fora, Janis Joplin morreu, os Beatles acabaram e quase 40 anos se passaram desde que Jimmi Hendrix encerrou o festival de Woodstock com a hoje lendária versão para "The Star Spangled Banner", o hino nacional norte-americano. Mas quem disse que ele liga? Seu barato é justamente esse, viver a sua lenda pessoal, a profissão de fé na contracultura e no rock'n'roll, entre imagens de Jim Morrison, almofadas com motivos indianos e antigos discos em vinil. A única coisa remotamente nova é um pôster com a capa de um álbum da banda norte-americana Sublime, cujos membros encerraram as atividades em 1997. O sustento vem dos shows que realiza por todo o Brasil e de uma pensão como aposentado autônomo que recebe mensalmente do INSS.

De repente, ele pára de falar e olha o rio que cerca a área de
recreação do hotel, um trapiche de madeira com algumas cadeiras, um restaurante e um bar. Pensa um pouco e engata uma conversa sobre o tempo em que trabalhou como comissário de bordo da Panair do Brasil. Com orgulho, lembra das refeições servidas pela empresa durante os vôos, dos pratos de louça chinesa e dos talheres de prata. Depois de servir os passageiros, ia para os fundos do avião e imitava Dalva de Oliveira e Elvis Presley para os colegas de trabalho. Em seguida foi demitido da empresa e passou a trabalhar na Varig, de onde foi mandado embora após pular em cima da mesa da atriz Gina Lolobrigida numa boate em Barcelona usando uma peruca loira. Aproveitando o embalo, lhe deu um banho de sangria e a tirou para dançar. Na saída, ainda encontrou disposição para sair no pau com o dono do lugar. Ao chegar na sede da empresa, um relatório com as suas estripulias já estava na mesa do chefe. Corriam os anos 50 e Serguei viajou o mundo todo por conta da profissão. Inclusive Belém, que visitou várias vezes. Só não foi para a selva. "Isso era com o pessoal do Catalina, que pousava bem ali", diz ele apontando para o local onde hoje está localizado o complexo turístico Ver o Rio. A conversa muda de rumo mais uma vez. Serguei fecha os olhos e ergue os braços num discurso sobre a necessidade de preservar a Amazônia e as vantagens da reciclagem de lixo e da doação de orgãos.

"Mas na época da Panair", grita ele de repente voltando aos seus dias de comissário de bordo, "Tinha glamour, tinha estilo. Hoje em dia tem o quê? Aquelas caixinhas de plástico que dão pra gente comer no avião! Cadê o estilo? Cadê o glamour? Porra! Isso tudo morreu nos anos 60".

Os temas se atropelam, os assuntos vão e voltam e Serguei jamais lembra de datas e nomes com exatidão. Durante alguns momentos, se perde em digressões. Como quando pergunto sobre a sua ida aos Estados Unidos. Era o começo dos anos 60 e, cansado do rigor das companhias aéreas, foi para Long Island, onde morou com a avó materna. Naquela época, ainda se chamava Sérgio Augusto Bustamente. Sem o Anderson, sobrenome da parte norte-americana
da sua família que ficou fora da certidão de nascimento. Na Terra de Marlboro, viveu de perto o desbunde flower-power, deixou o cabelo crescer, experimentou tudo o que pôde e viajou o país de costa a costa. Em 1973 volta ao Brasil e vai morar em Saquarema com os pais.

"Eu amo a América", diz beijando a sua calça estampada com a bandeira norte-americana, "América, home of the brave and land of the free. Lá tem respeito, tem seriedade, tem liberdade. Aquele povo lindo tocando flauta pelas ruas. Uma beleza. Depois veio o Maio de 69 (N. A: o evento a que ele se refere é o Maio de 68). Não um 69 daqueles que a gente faz com a língua, mas o 69 dos estudantes franceses gritando nas ruas de Paris que era proibido proibir! E depois Woodstock. Mas aqui, quando voltei, não queria nem saber se tinha Ditadura. Vivia a minha onda. Andava de cabelo grande, flor no cabelo, uma máscara em forma de sol na cara, muito antes dos Secos e Molhados. Minha mãe dizia 'cadê o vinco da tua calça, menino?'. Porra, pra que que eu ia querer calça com vinco? Queria era rasgar as calças, andar com o joelho para fora. Mas aí morreu a Janis, o Hendrix e o Jim Morrison. Depois o movimento hippie acabou e eu me dei conta de que o sonho tinha chegado ao fim".

Se a contracultura escorreu pelo ralo com a chegada dos anos 70, o mesmo não pode ser dito de Serguei. Enquanto no mundo todo ex-hippies cortavam o cabelo, tomavam banho e iam procurar o que fazer, ele continou a acreditar na salvação através do rock'n'roll, ainda que só conseguisse encontrá-la nas areias da praia de Saquarema. Em suas próprias palavras, nada o impediu de viver intensamente o epiteto "sexo, drogas e rock'n'roll". Do famoso namoro com a cantora Janis Joplin - "Serguei is the craziest person I've ever saw", é o que ela teria dito após conhecê-lo - à transa com uma árvore em Saquarema, ele então abre o baú e começa a contar suas histórias.

"Essa história da árvore é verdade, bicho. Pô, tava com o maior tesão na praia e não tinha com quem dar uma trepadinha. Aí vi aquela árvore toda bonita, umas folhas verdes grandes, o tronco... Me passou uma energia muito boa e acabei dando um abraço nela. Tava tão gostoso que acabei gozando. Sexo pra mim não tem limites. Não caso porque corro o risco de me apaixonar pela família da noiva e pode dar problema. Gosto de experimentar de tudo. Já trepei dentro de um barco em pleno Rio Negro. Como a gente tava muito animado, ele acabou virando e caímos na água. Fiquei apavorado porque me disseram que lá era cheio de piranha. Já pensou se levo uma mordida?".

Engana-se no entanto quem acha que a idade amaciou o homem. Se tem uma coisa que lhe aborrece é quando lhe dizem que está velho demais para o rock'n'roll. Ele se levanta e começa a protestar. "Bicho... Pra que ficar rotulando os outros? Tu faz 30 e te chamam de 'balzaqueano'. Depois vira 'coroa' e já querem logo te enterrar. Porra, coroa...'Ah, coroa, o pai da Martinha, chato pra caralho'. Eu lá quero ser coroa? Outro dia eu tava com o Roger, do Ultraje a Rigor, e uma menina chegou perto dele e disse 'ei, tio, me dá um autógrafo'. Ele ficou sem saber o que dizer e eu comecei a rir. Tu acha que eu ligo pra isso? Eu não. Eu tô inteiro e ainda faço as minhas estripulias. Não tenho sexo e não tenho idade, eu ando solto pela cidade. Mas com muito rock na cabeça".

Aproveito a deixa e pergunto se ele gosta da música feita no Brasil hoje em dia. Se, por exemplo, já foi a um baile funk. Serguei se aborrece, dá um pulo da cadeira e começa a dançar imitando a cantora Tati Quebra-Barraco, rebolando até o chão com as mãos nos joelhos. "Baile funk? Eu odeio funk, bicho. Me dá vontade de vomitar só de pensar numa coisa dessas. Não tem melodia, não tem mensagem. É um lixo completo. Não é os Beatles, saca?".

O papo termina. No caminho para o lobby do hotel, diz "bom dia" para todo mundo, cumprimenta os funcionários e fala com os integrantes de um congresso de representantes de medicamentos que acontece no auditório. Quem não fica chocado se diverte com aquela figura destoando dos engravatados que aproveitaram a pausa nas palestras para tomar um cafezinho. Em frente a um espelho gigante, emoldurado em um quadro de madeira com
entalhes rococó, ele pára e começa a fazer pose.

"Pô, bicho, esse espelho é o maior barato. Queria levar para casa"
"Até que tu pode. Acho que não pega nada. Se não me engano, na tua idade a pessoa já é iniputável. Não vai mais para a cadeia", respondo.
"Ah é? Pô... Massa"

Nos despedimos. E então ele me chama mais uma vez antes que eu vá embora.

"Cara... Tenho uma parada pra te falar..."
"Diga lá"
"Putz... Me esqueci..."

Fico parado esperando.

"Pô, lembrei... Hoje é dia dez de novembro, meu aniversário. Faço 73 anos, bicho!"

A mim, só restou lhe dar os parabéns. Visto assim de perto, nem parece.

Vladimir Cunha - Belém / Pará

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