terça-feira, 1 de janeiro de 2008



FÉRTIL E FRÁGIL

Carlos Gurgel

Carlos Humberto era um gentleman. Um gentleman da miséria humana. Refinado e atencioso. Silencioso e educado. Ele se lambuzava com a miséria e era um intelectual. Tinha extrema dificuldade de organizar a vida prática. Não socializava. Era solitário. Via tudo e anotava as cores e as dores do mundo.
Fictício e real, anacrônico e imaginário. Desembocava com seus olhos de lince, vários lances que admirava. Mexer com códigos verbais, escondendo neles a sua revolta, rebeldia e inconformismo. Via a vida como um eterno passageiro que agonizava. Que agüentava impropérios de quem dele nada sabia. E ele não revidava. Ele escolhia as cores e as palavras para destilar todo o seu inconformismo da complexidade do que é viver. Do que é sobreviver. Do que é sofrer.
Essa mania de ser artista custa caro. Principalmente estando de bolsos vazios. Esse estigma de ser visto como um desordenado. Um fora de ordem. Ele (Humberto) não ligava, não tava nem aí para a decifração de que era sistemático e cientificamente dentro dos padrões. O que agoniava ele, era ele perceber que o mundo é hipócrita. E ele sendo proscrito, não conseguia dialogar com a terra.
Por isso (e por outras) ele sempre se mostrava arredio. Nunca via Humberto com uma turma. Ele nunca fez parte de uma galera. Eu acho que minto: a galera dele era outra: ele navegava, viajava, lapidava todas as formulações mentais para entender esse mundo que imaginamos viver.
Sim, a gente imagina viver. É tudo ilusão, superstição, emulação, tentação e expiação.
Carlos era gauche. Direitinho como Drummond falava. Carlos era um errante. Um mutante. Um elegante que caminhava constantemente em terreno minado. Ele não se sentia confortável, olhando, pensando e percebendo o que esse mundo apronta.
Esse negócio de mundo certinho, não combinava com ele. E o sinal mais evidente disso que estou dizendo, era os seus dois espantados olhos.
Sim, através da visão, enxergamos e sentimos com mais virulência, toda a monstruosidade do que é viver.
Carlos estava sempre largado. E acelerando coisas. (Contradição?). Dando conta de espantos e desmaios. Suspirando com sua lente a necessidade de catalogar paragens.
O artista carrega consigo as dores, as cores de um mundo múltiplo e disforme. Insistente e guerreiro, o artista formula, recria, persegue, induz, fareja, promete, silencia, adormece, propaga, eterniza, levita, transcende, avisa, sustenta, reclama, beija, vigia, concentra e libera descobertas.
Sim, somos todos possuidores de energias. E de fantasias. Alergias e alegrias.
Carlos era mágico. Ele sobrevivia diariamente da forma mais junkie. Underground. Possuía o dom franciscano. Ele nunca explodia. (E sempre explodia). E penitenciava ao redor dos seus labirintos, as suas preferências obscuras.
Era humano e extremamente criativo. Era capaz de rapidamente encontrar respostas para as cores e o alfabeto das suas inquietações vivenciais.
Amava o obscuro e a complexidade do ver. Registrava tudo. Nada passava desapercebido. Era um vigilante das horas mais estranhas e do silêncio da alma. Dialogava com deuses e diabos. Ria e chorava. Ele era noturno, mais também tinha fé na luz do dia. Sentia a pulsação da hipocrisia humana. Refazia com seu riso raro, o testemunho de uma pessoa singular. Nesse ponto Carlos e Cirillo eram irmãos. Era cumpridor de noias e traumas. Tentava compartilhar com elas, uma amizade duradoura.
Assim, com o passar do tempo, a sua arte foi tomando proporção divina. Varava noites pensando sobre o respeito humano. Sobre a cor que teimava em não se apresentar. Sobre a arte de ser cronista dos desesperos e dos miseráveis desejos mundanos.
Carlos era puro. Ele era uma criança. Brincava com despenhadeiros e com o ímpeto de se sentir out-sider. Negligenciava meio termo e a difusa confusão que se estabelecia quando solicitado para compreender lições e ilações sociais.
Ele morreu louco. Insano. E rebelde.
Ele viveu as últimas horas de um mundo que ele mesmo amava. Mesmo sabendo da inteira ignorância que reina entre nós.
Carlos se foi. Aonde ele está, certamente confirmará suas contravenções. Suas revoluções. Suas inquietações.
Seu singular faro e fórum. Discípulo e profeta da esculhambação do que é viver.

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