sábado, 1 de março de 2008


SONORA PALAVRA


(A parceria na obra vocal Contemporânea)
Por
Marcia Taborda
Das raras intérpretes brasileiras que se dedicam ao repertório contemporâneo, Marcia Taborda vem desde 1989 atuando em Bienais e festivais de música no Brasil e exterior como Porto Alegre Em Cena, Montags Musik Brasilien em Berlim e Pro Musica Nova promovido pela Radio Bremen, realizando primeiras audições de inúmeros trabalhos.
Doutora em História Social pela UFRJ com a tese “Violão e identidade nacional: Rio de Janeiro 1830/1930, desenvolveu paralelamente estudos de canto com o soprano Carol Macdavit e especializou-se em repertório contemporâneo com Joan LaBarbara e Christine Schadberg em Nova Iorque.
Como integrante do Ensemble Jocy de Oliveira, participou da Ópera Inori encenada no Centro Cultural Banco do Brasil (1993) e desde então vem realizando audições e estréias de trabalhos da compositora como a obra “Naked Diva” cena da trilogia de “As Malibrans” que estreou em 1998 na Sala Cecília Meireles.
Uma das vencedoras do Programa de Bolsas Rioarte - 2004, foi a única brasileira a receber o prêmio The 1997 Kennedy Center Fellowships of the Americas, com projeto de pesquisa sobre a utilização da voz no repertório contemporâneo.
Gravou para o selo ABM Digital o CD “Musica Humana”, com obras do repertório Brasileiro Contemporâneo e para a Acari Records a obra de Paulinho da Viola escrita para violão.

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A incorporação de novos recursos sonoros através do mergulho no vasto universo de possibilidades do colorido do som, ou seja o reino dos timbres, foi dos grandes legados da produção musical do século XX.
Embora tenha sido inegável a contribuição da composição acústica para o reino das novas sonoridades, a grande expansão deste domínio aconteceu através das experiências composicionais da música eletrônica, que desenvolvidas a partir da década de 50, viriam a representar uma verdadeira revolução no pensamento musical contemporâneo. A experiência eletrônica implicou na renovação no modo de conceber a composição instrumental-vocal, que passou a apresentar projeções temporais que não podiam mais ser concebidas através de uma lógica unidimensional.
A voz, "único instrumento comum a todas as civilizacões musicais" segundo Pierre Schaeffer, devido à extensa gama de associações e riqueza de suas possibilidades, foi dos instrumentos mais receptivos aos novos processos, englobando desde os padrões técnicos da vocalidade tradicional, aos mais variados aspectos da experiência vocal cotidiana.
O discurso vocal que até então relacionava-se quase que essencialmente à emissão de sons no espectro cantábile da voz, incorpora toda uma gama de possibilidades e de inusitados materiais sonoros: gritos, sussurros, assobios, riso, choro, glissandos, efeitos percussivos, entre muitos outros, passaram a ser matéria prima neste novo universo composicional. Devido a quase invariável ligação à palavra, vamos notar que a interinfluência texto-música sofreu inúmeras e marcantes modificações ao longo deste processo: textos serão traduzidos em textura, passando a ser escolhidos por suas possibilidades fonêmicas, podendo (ou não) ser organizados de maneira a produzir um resultado cujo significado seja não verbal. De fato a relação texto-som abrirá uma grande janela para a criação de trabalhos onde o ritmo, o timbre e o conteúdo da linguagem serão usados como matéria prima para a criação da música. Não se trata mais de musicalizar a palavra, mas extrair da palavra o conteúdo musical.
A obra vocal do compositor italiano Luciano Berio oferece rico exemplo de integração dos processos acima descritos. Seus trabalhos envolvendo a utilização da voz, além de constituirem repertório fundamental deste universo estético, irão inaugurar uma nova dimensão na relação compositor/intérprete.

Parceria

No bojo das transformações trazidas pelo advento das técnicas eletroacústicas e dos diversos processos composicionais que vieram a seguir, a relação compositor/intérprete será redimensionada, passando a se caracterizar, mais propriamente, num trabalho de colaboração. Este redimensionamento da participação do intérprete foi caracterizado por Michael Nyman:
a música nova engaja o intérprete em estágios anteriores, acima e ao lado daqueles em que ele era ativo na tradicional música ocidental. Envolve sua inteligência, sua iniciativa, suas opiniões e preconceitos, sua experiência, seu gosto e sensibilidade, num caminho em que a colaboração com o compositor torna-se indispensável.
A obra vocal de Luciano Berio não foi escrita para voz, mas para uma voz: a de Cathy Berberian. A sensibilidade musical de Cathy estava absolutamente afinada com as novas possibilidades de emissão vocal; reunindo virtuosismo e intensa dramaticidade, a cantora soube como nenhum outro intérprete verter em expressão musical qualquer material que se fizesse som.
A primeira grande parceria aconteceu em 1958 com a obra Thema: Omaggio a Joyce, cuja matéria prima se compõe inteiramente da leitura gravada em fita magnética do capítulo XI de Ulysses de James Joyce.
Cathy Berberian realizou a leitura desta passagem, repetindo o texto vertido para o italiano e frances. A obra se inicia com o fragmento em inglês como originalmenmte lido pela cantora, o que nos permite vislumbrar a mestria com que estraiu sonoridades das onomatopéias da prosa de Joyce. O trabalho final se constituiu no contraponto do material gravado e da transformação desta mistura através de processos eletrônicos.
O próximo projeto vocal/eletrônico da dupla foi a obra Visage (1960-61). Desta vez não há mais um texto a ser lido; o material musical parte de improvisações de Cathy Berberian, num conteúdo destituído de significado linear, mas de abundantes referências emotivas. Em meio a seções de conversação, desenhos de intonações e inflexões constantemente entremeadas por diversos tipos de gargalhadas, fluxo contínuo de sons, surge uma única palavra: parole.
A experiência da realização destes trabalhos permitiu ao compositor escrever obras acústicas diretamente influenciadas pelos processos técnicos de estúdio, como fragmentação, superposição, mobilidade de caracteres vocais, velocidade de transição de um caráter a outro, efeitos que sobressaem na virtuosística Sequenza III (l965-66) - para voz solo.
De forma geral, as possibilidades de parceria intérprete/compositor, no âmbito das novas estruturas musicais, podem ser relacionadas :
• No caso de obras acústicas, alguns parâmetros do som ficarão indeterminados, cabendo ao intérprete a contribuição pessoal para a realização final do trabalho ;
• No processo de composição de obras eletrônicas, a criação de materiais partirá muitas vezes de improvisações, nas quais o intérprete fornecerá o material básico a ser trabalhado em estúdio;
• Nas obras mistas, tape/instrumento o material gravado será tratado como a "partitura" cabendo ao intérprete a realização / finalização em tempo real da obra musical.
Desta forma, as questões fundamentais subjacentes ao progresso tecnológico que afloraram nas últimas décadas, trouxeram a necessidade de reavaliação de conceitos referentes a própria natureza da matéria musical e às possíveis formas de sua organização. Novas relações entre as propriedades do som - altura, timbre, intensidade, duração, levaram ao desaparecimento dos eixos vertical/horizontal, e proporcionaram também novas perspectivas relacionadas a escritura, análise e escuta e desse material.

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