quarta-feira, 5 de março de 2008



UMA ÓPERA DO SERTÃO

O novo filme de Sérgio Ricardo, A Noite do Espantalho, é o primeiro filme dramático inteiramente baseado numa estrutura musical, o que sem dúvida representa uma importante experiência para o cinema brasileiro. Autor de dois outros longa-metragens, Esse Mundo É Meu e Juliana do Amor Perdido, além do curta O Menino da Calça Branca, Sérgio Ricardo talvez ainda seja mais conhecido como cantor e compositor, a princípio mais ou menos identificado com a bossa nova e depois com uma conturbada participação nos festivais de música popular.
Mas, acima de tudo, Sérgio Ricardo ficou conhecido pela autoria da trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. E, de um outro ponto de vista, como um artista preocupado fundamentalmente com a possibilidade de comunicação com o povo. Nesta entrevista especificamente ele aborda no quadro de sua experiência pessoal com A Noite do Espantalho, um problema que envolve o conjunto do cinema brasileiro: quais as possibilidades de um cinema popular? E isso tanto no que se refere às informações que possibilitam a realização do filme como no que diz respeito às suas possibilidades de comunicação com o público.
Na fala de Sérgio Ricardo expressa-se uma das preocupações essenciais daqueles que vivem no gueto cultural: como seria possível para o cineasta se comunicar com outras camadas de público que não aquela de onde é oriundo e que tem basicamente as mesmas informações, isto é, as camadas cultas e abastadas do público urbano? Qual a possibilidade do filme atingir um público com outras informações?
Porque se um filme inspirado em temática e formas de expressão que procuram ser populares não chegar ao público de que fala e a que basicamente se destina, então necessariamente ele representa uma apropriação da linguagem popular em benefício exclusivo dos públicos urbanos.
As colocações de Sérgio Ricardo ao longo da entrevista refletem sobretudo essas preocupações e fornecem elementos que poderão servir de ponto de partida para uma discussão mais aprofundada desse problema básico para a criação e a distribuição cinematográfica no Brasil. (Carlos Murao).
A que públicos você dirige seu filme?
Sérgio Ricardo - Ao começar a trabalhar neste filme, eu não tinha só a preocupação intelectual ou artística de fazer um trabalho que fosse entendido por intelectuais e artistas. Mas dar em primeira instância importância mesmo à comunicação com o povo. Com aquilo que a gente poderia chamar as diversas classes. Quanto mais abertura tiver o filme, melhor para mim. É uma preocupação que acompanha todo o pessoal do cinema. Como o cinema é de certa forma uma indústria, a gente investe uma grande importância e seria suicídio restringir o entendimento do filme apenas a uma pequena camada de intelectuais entendidos em cinema.
Por isso, e também por vontade pessoal de compreender a linguagem do povo de devolvê-la do meu próprio filtro estético, trabalhei com essa preocupação de comunicação ampla. Até agora, a única coisa que eu sei é que o intelectual vem gostando do filme. Até o momento não tive muitas opiniões em contrário. A classe estudantil também entendeu e gostou. Não me interessa na verdade se gosta ou não gosta, a minha preocupação é o problema do entendimento. Então foi entendido pela classe estudantil e pelos intelectuais, tanto aqui como fora do Brasil. Mas o que me preocupa mesmo é ver se será ou não será entendido pelo homem do campo, pelo operário. O ideal é que em primeira instância fosse entendido pela população rural, porque é da vida dela que trata o filme. E seria interessante que eles entendessem o que eu quis dizer com o filme. Se o operário não chegar a entender, não será tão grave para o meu propósito. Acredito que esse seja o dado fundamental da criação desse filme, porque o meu esforço foi buscar a própria linguagem do povo, do homem do campo, para narrar uma história dele mesmo, mas através da minha visão de mundo. Se o filme chegar a ser entendido por ele estará cumprida a minha intenção e o filme terá vingado. Se o camponês não chegar a entender, se não entender a mitificação de seus valores intelectuais, de criação, de imaginação, se ele não se sentir retratado ao nível de seu entendimento, então o filme estará frustado na sua função principal. Poderá inclusive alcançar sucessos maravilhosos em outras classes, no exterior, por essa ou aquela forma exótica, por esse ou aquele valor de beleza, de fotogênia, de não sei o que, mas o fundamental do filme estará de certa forma frustado. O problema: a dificuldade que tenho de chegar com este filme até o campo. Porque não tenho uma máquina 35 mm para poder levar o filme debaixo do braço lá onde eu queria mostrá-lo. Então a lógica seria ver se os veículos normais de exibição de filmes vão me permitir fazer com que este filme chegue até a zona rural. Essa é uma outra angústia, porque não acredito muito que o filme chegue até lá. Inclusive já estudamos a possibilidade de fazer cópias 16 mm e fazer nem que seja um teste de exibição numas fazendas, uns campos aí, pelo menos no nordeste. Esse é na verdade o grande propósito. No lançamento do filme em Recife, pretendemos, junto digamos com a burguesia que vai assistir à estréia, trazer o povo que participou do filme, de Fazenda Nova, de Fazenda Velha, de Nazário. Vamos trazer os homens do campo que trabalham no filme do sertão para a cidade e colocá-los na mesma sessão de cinema, para ver se pelo menos aí a gente percebe o entendimento que eles tem do filme
A Noite do Espantalho conta uma história de nordeste, de seca, de espoliação do camponês. Por que ter ambientado esta história na cenografia de Nova Jerusalém?
Aí me parece que entra a grande investida do filme numa linguagem que até então não tinha sido feita no cinema, pelo menos que eu tenha visto. Ao invés de ambientar a história dentro do realismo da situação verdadeira do camponês, usar o seu próprio cenário e a sua própria realidade quase que como um documento, como até então vinha sendo feito, parti para outra. Isto parte de um dado fundamental: realmente ninguém gosta de se ver retratado, encabula muito. Nem o cara de classe média nem o intelectual gostam. Mas se o camponês encontrar no filme a sua própria forma de criação, ele vai entender muito mais o problema. Veja a experiência com um de meus filmes, Esse Mundo É Meu: mostrei para algumas pessoas da favela, que não gostaram de ver a miséria da favela retratada no cinema. A primeira coisa que passa pela cabeça de um homem da favela é: "Aquele cara vai querer mostrar a sujeira da gente para o mundo inteiro; ele fotografou tudo na favela e agora estou eu aí na tela sujo e feio". A primeira sensação é uma revolta, quase como se fosse uma traição. Ele não raciocina especificamente sobre os problemas daquele personagem, ele não se identifica com o personagem, ele vai fazer tudo para não se identificar.
Agora, se ele vir o samba colocado na tela, com aquelas vestimentas, aquela alegoria toda, e de repente junta um problema dele dentro da cena, ele vai se identificar, tenho a impressão, muito mais. Principalmente com aquela fertilidade de imaginação do povo, a sua ingenuidade, o colorido, a alegoria, a simbologia toda. Essa foi a premissa de que parti para enfeitar, vamos dizer, o filme com uma estilística próxima da criação do próprio povo, a moto com asas, o dragão. São elementos da fantasia do povo que vêm reproduzidos na literatura de cordel. Muitas vezes eu vi pelas feiras do nordeste o cantador lendo o libreto de cordel com aquela fantasia toda de dragão que come não sei o que, de princesa roubada por não sei quem. E em volta, a platéia de vaqueiros e camponeses em geral ficava embevecida com aquela poesia da ingenuidade que transcendia o próprio problema em si dentro de uma fantasia muito rica, muito apocalíptica. Qualquer coisa que viesse dentro daquela informação sobre os problemas dos camponeses seria recebida sem a menor resistência. Essa cultura popular não nasceu à toa, se ela ainda existe e resiste no interior, nas feiras, é porque tem alguma verdade.
Então esse tipo de linguagem me encorajou para enfrentar um cenário inteiramente irreal. Não existe o greco-romano no sertão brasileiro, só existe nesse teatro que foi construído lá. Na própria filmagem, pude verificar que isso era importante para a compreensão do povo: o povo que fazia a figuração sentia na pele a fantasia do filme, entendia perfeitamente, e eu percebia que quanto mais fantástica a cena que se filmava, maior era o interesse despertado pela cena. Dentro do próprio campo de filmagem, comecei a sentir o sucesso do empreendimento.

A Noite do Espantalho é um filme musical, se falou até numa ópera do sertão. Você poderia situá-lo, enquanto musical, no panorama do cinema brasileiro?
Isto é outro arrojo do filme. No cinema, intimida muito pensar em drama ou em tragédia dentro de uma estrutura musical. Tradicionalmente no Brasil, quando se pensa em musical, a gente pensa logo em chanchada, pois é a forma já experimentada com sucesso. O sujeito, que parte para uma chanchada sabe exatamente que tipo de resultado pode obter. Mas no caso de um drama, ou mais exatamente de uma tragédia, era diferente. Existia a minha experiência anterior como compositor e o fato de ter feito a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e outros filmes: estava lá a minha chance voz cantando e narrando trechos do filme. Senti que a imagem dramática ligada a uma música dramática dava um resultado fantástico dentro do cinema brasileiro. Talvez com mais força do que a própria chanchada em termos de comunicação.
Por outro lado, havia a temática em si: enfrentar um estilo cordelesco sem colocar a música e o cantador seria empobrecer a narrativa. E o cantador do sertão não é cômico. Cômico é cantador de feira que a gente encontra em cidades maiores, ele usa a graça e a comédia para se expressar. Mas os cantadores que se desafiam, esses enfrentam uma parada mais séria. Basta percorrer as formas de linguagem do desafio para perceber que existem diversas formas bastante agressivas, trágicas, apocalípticas mesmo. Pode até se dizer que apoiei a linguagem do filme numa pesquisa que andei fazendo, não só da música como de literatura de cordel. O que mais me impressionava era a profundidade que eles pretendiam alcançar, não só na loucura com que envolviam apocalipticamente as formas e as imagens que eles criavam, como na rudeza com que enfrentavam determinados temas violentos.
Gravei em Fazenda Nova dois cantadores. Havia uma seca violentíssima, a plantação estava se estragando e num momento em que os cantadores estavam se desafiando, começou a trovejar, e eles, dentro daquele ruído do trovão, começaram a improvisar a alegria que significava este acontecimento, e começaram a engrandecer o acontecimento. Começou realmente a chover e ficou uma coisa apocalíptica. Só ouvindo a gravação para poder perceber a que ponto dramático eles chegam ao enfrentar determinada situação. Isso me encorajou para enfrentar uma tragédia musical. Fui até modesto: poderia ter abusado até mais.

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