quinta-feira, 6 de março de 2008



UM MANDUKA COMO POUCOS


Nasceu irremediavelmente poeta. Aos quatro anos de idade, uma tia levava-o em passeio por Copacabana quando ele saltou de sua inocência e perguntou a queima roupa, para o terno espanto dela, se o mar ficava ali de noite, e como a resposta fosse afirmativa tornou a indagar "e fazendo o quê, esperando o sol para se esquentar?". Era assim Manduka, falecido na semana que passou, ainda na força e na inspiração de seus cinqüenta e três anos bem vividos, deixando inconsoláveis seu pai o poeta Thiago de Mello, de quem herdara a veia lírica e a alma de artista, e a mãe, a jornalista Pomona Politis, que lhe passou o ardente sangue grego. Manduka era carinhoso apelido de família. Na verdade, chamava-se Manuel, em homenagem ao padrinho, o vate nacional Manuel Bandeira, íntimo amigo de Thiago, que celebrizou o menino logo ao nascer com um poema em seu Mafuá de Malungo.
Criou-se assim, tropeçando nas pernas de poetas, escritores e boêmios, a movimentada fauna na qual o pai também pontificava no Rio de Janeiro dos anos 50. Ainda muito pequeno acompanhou Thiago em suas andanças pelo mundo, passando longa temporada no Chile, onde simplesmente cruzou com um dos maiores mitos da nossa América: morou nada menos do que numa das vivendas de Pablo Neruda, privando da amizade e do carinho do poeta já consagrado e agraciado com o prêmio Nobel. Nos jardins da quinta, o grande Neruda, bem ao seu estilo, fazia o seu show matinal para o pequeno alumbrado, tirando dos bolsos, em passes de mágica, objetos fascinantes ("Mira, Manolito...") como pássaros, conchas do mar, brinquedos de corda e fantoches, que manipulava com a graça infantil de clown de circo. Enfim, um mundo encantado que nos faz logo pensar num filme que bem poderia se chamar O Menino e o Poeta, parafraseando a inesquecível obra de Skármeta.
Ungido e crismado nesse clima, desde o nascedouro estava Manduka fadado a trilhar uma carreira de artista. E decidiu-se cedo pela música, como poderia ter enveredado pelo desenho e a pintura, que só tardiamente abraçou, na década de 90, quando o conheci. Mas foi como compositor e letrista que se lançou e brilhou, trabalhando com o Geraldo Vandré da última fase e depois com Dominguinhos, com quem fez a conhecida "Quem Me Levará Sou Eu", que, recebida calorosamente, conquistou a láurea principal num festival da TV Tupi. Isso num tempo em que os festivais consagravam nomes como Chico Buarque e Caetano Veloso. Suas derradeiras parcerias em música se deram já na sua fase brasiliense, com o também poeta e jornalista Luís Turiba; e nos últimos meses preparava com os irmãos chargistas Paulo e Chico Caruso um show em grande estilo, que o traria de volta aos palcos do Rio de Janeiro.

No bar da livraria Presença, chamava-me a atenção aquela figura meio sobre o bizarro, tirada a Anthony Quinn, lembrando o grego Zorba, óculos escuros e barba hirsuta. Bebericava o seu Martini sempre solitário, na verdade só de puro charme e figuração para esconder a timidez e um temperamento até certo ponto arredio, como pude concluir depois. Um dia em que se excedera nos drinks mostrou-se em todo o seu talento histriônico: assisti então a uma sua imitação absolutamente mediúnica de Manuel Bandeira, dizendo com certeira sensibilidade o "Evocação do Recife", com a mesma voz cavernosa de tuberculoso profissional, tão minha conhecida do antigo disco Festa. Entrei na roda e no papo e de repente era como se fôssemos amigos há trezentos anos e selamos ali uma amizade para toda vida.

Depois fiz para Manduka e com sua mulher, a bela Valéria a quem ele chamava ternamente de "garça morena" um longo clip filmado nos picos rochosos dos Pireneus goianos, que virou peça de resistência do seu show Zum-Zum, com o qual fez uma cruzada de norte a sul do Brasil, tocando, cantando e conversando com os universitários. Por último, já morando em Petrópolis, onde se tornou parceiro de Alceu Valença na escrita de uma ópera popular para o cinema, começou a trabalhar também na trilha sonora do meu filme O Engenho de Zé Lins, sobre o romancista José Lins do Rego que quase conheceu, pois o autor de Fogo Morto morreu nos braços de Thiago de Mello, seu maior amigo e confidente.
Agora a cena é outra mas trata também da passagem desta para a melhor, como dizem. Vejo Manuel Bandeira, em meio aos querubins, recebendo o afilhado, enlaçando-o numa nuvem e beijando-o afetuoso com sua proverbial dentuça. Ao fundo sua voz ressoa cava e doce, dizendo o poema do batismo de Manduka, ao dedicar aos seus pais o livro Opus 10 de sua lavra: "A Thiago e Pomona ofereço/ Meu Opus 10, exemplar A/ E com este voto ofereço:/ Deus bem-fade a vida em começo/ Do opus 1 deles, meu xará./ - Meu imprevisível xará".

Texto de Vladimir Carvalho, cineasta

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