sábado, 29 de março de 2008




O VÍCIO SEGUNDO UM BEAT

por Luiz Rebinski Junior ( jrreb inski@yahoo.com.br )

Dentre os escritores da chamada Geração Beat, William S. Burroughs foi o que mais se preocupou em explicar o fascínio que as drogas geram na mente humana. Burroughs, até o momento de sua morte, em 1997, aos 83 anos, foi uma espécie de guru para diversos escritores, cineastas, músicos e seguidores da contracultura. Muito dessa idolatria deriva do modo com que o escritor, nascido nos Estados Unidos, abordava temas até então considerados tabus e subversivos para a sociedade norte-americana dos anos 1950.
Junky , um de seus livros mais conhecidos e cultuados, é uma mostra do radicalismo experimental da escrita de Burroughs. Há muitos anos sem edição no Brasil, Junky é parte de uma caixa, composta por mais dois títulos – Os Paraísos Artificiais e Confissões de um Comedor de Ópio , de Charles Baudelaire e Thomas de Quincey, respectivamente – que a editora Ediouro colocou na praça e que traz o sugestivo nome de Intoxicações . O livro, que narra as experiências de Burroughs com narcóticos, recebeu uma edição de primeira, com prefácio do escritor Joca Reiners Terron e que resgata textos de Allen Ginsberg que falam sobre a obra.
Escrito no início de 1950 e publicado três anos mais tarde pela editora Ace Books , o livro teve uma trajetória bastante conturbada. Muitos mistérios e desencontros cercam o nascimento da obra, que teve, diz a lenda, a sua primeira versão extraviada. Só para se ter idéia, até o ano de 1964 Junky não tinha sido publicado com o nome do autor, mas sim com um pseudônimo de Burroughs.
Narrado em primeira pessoa por um tal Bill Lee – alter-ego de Burroughs–, Junky é um passeio pelo submundo norte-americano em plena ascensão do Macarthismo e da paranóia comunista desencadeada pela direita do país. Bill é um vagabundo que conta como entrou para o mundo das drogas e se tornou um viciado. Com um excepcional entendimento de causa, Burroughs mostra com detalhes a rotina dos viciados para conseguir a tão desejada e necessária dose diária de droga.
Levando ao pé da letra a idéia de que não se pode fazer literatura experimental sem que haja uma vida igualmente experimental, Burroughs vai fundo no universo underground para realizar sua obra. Sempre atrás de uma receita médica que autorize a compra de substâncias, Bill e sua corja vão até o inferno para obtê-las. Antes que a fissura chegue, Lee utiliza todos os meios – legais ou não – para que o organismo não sinta falta daquilo a que já está tão acostumado. Os roubos e as trapaças são os expedientes mais comuns para conseguir barbitúricos, heroína, cocaína e todos os tipos de alucinógenos.
Junky , com sua terminologia específica e detalhes científicos da composição das drogas, tinha tudo para se tornar um mero diário da rotina de um viciado, não fosse o modo pouco peculiar da narrativa empregada por Burroughs. Acreditando ser a linguagem – e a forma – um meio mais poderoso do que o próprio conteúdo – no caso de Junky , o vício –, o escritor consegue dar vida a um tipo de literatura que fugia do estilo consagrado da narrativa linear e seqüencial que vigorava na literatura de então. Bill, ao melhor estilo on the road , em cada capítulo do livro perambula por lugares pitorescos e que aparentemente não têm conexão nenhuma com os últimos acontecimentos da narrativa. Se em um dado capítulo Bill Lee está roubando carteiras no metrô de Nova Iorque, nas páginas seguintes pode estar em uma fazenda do sul dos Estados Unidos tentando fugir da paranóia provocada pelo vício. Esta particularidade de Burroughs, aprimorada mais tarde com a idéia do cut-up , em que o escritor leva às últimas conseqüências a intertextualidade e interatividade textual, é o que confere a Junky o status de obra inovadora. Incorruptível na sua concepção de realidade, Burroughs levou até o final da vida o seu projeto de questionamento político e literário.
A leitura de Junky hoje pode suscitar o debate a respeito da descriminalização das drogas. Na verdade o cenário do tráfico de drogas nos Estados Unidos narrado por Burroughs é bem diferente do que acontece hoje no mundo. Em Junky o traficante não se diferenciava do viciado. A figura consagrada hoje do traficante milionário, que acumula bens materiais de alto valor e que comanda uma grande rede de negócios, não é exatamente a mesma que Burroughs descreve. Há 50 anos o traficante era aquele que vendia para sustentar o vício e nada mais. Não sonhava em ganhar rios de dinheiro e sim em um dia encontrar um saco de heroína para “viajar” pelo resto da vida. Pode parecer ingênuo ou mesmo romântico em demasia, mas era o que acontecia, pelo menos é o que Burroughs nos faz acreditar com seu relato.
O escritor norte-americano não acreditava que se drogar diariamente podia consistir em um delito. Para Burroughs, a droga leva o indivíduo a um estilo de vida. Um viciado poderia a ter emprego e família, mas sua rotina era incompatível com o dia-a-dia das pessoas que não compartilhavam do estilo drogado de ser. O escritor achava que, mais do que desfrutar dos prazeres proporcionados pela droga, o viciado tinha que entender como as substâncias funcionam no organismo humano, e quais são as suas complicações. Pois bem, se o vício é um estilo de vida, é preciso saber de forma minuciosa o funcionamento daquilo que, para o drogado, é sua razão de viver.
Junky termina com Bill Lee indo para o sul do continente americano em busca de experiências com o ayuasca, uma planta alucinógena usada a milhares de anos pelos índios. Tal experiência foi narrada anos mais tarde no livro The Yage Letters (1963). Apesar do forte estereótipo do homossexual-drogado-beat que paira sobre a persona de Burroughs, o escritor trafegou com estilo pelos mais variados gêneros da literatura, do western à ficção-científica.
O livro, que teve Allen Ginsberg como seu grande incentivador e admirador, foi a estréia de Burroughs na literatura. Antes de narrar as aventuras de Bill Lee, o escritor não tinha datilografado uma linha sequer. Diferentemente de Ginsberg e Kerouac, seus amigos de letras, Burroughs, antes do lançamento de Junky, era um desconhecido no cenário literário. Enquanto os expoentes da Geração Beat estavam gozando o sucesso proporcionado pelo arrebatador interesse pelo movimento nos círculos literários, que abalara os Estados Unidos, Burroughs, aos 30 anos dava seus primeiros toques na máquina.
Nascido em uma família abastada do meio-oeste dos Estados Unidos, William Burroughs foi um desajustado social, indo logo cedo, aos 15 anos, para Nova Iorque em busca da liberdade que sempre sonhara. A personalidade inconformista do jovem Burrough seria mais tarde o retrato da obra do velho e experiente Burroughs. É interessante notar que, assim como Charles Bukowski, outro outsider das letras, a literatura de Burroughs é pautada na experiência do homem Burroughs, do viciado, do gay e do visionário. Se o escritor tivesse seguido outro caminho, mais convencional, certamente livros como Junky e Naked Lunch (Almoço Nu) não existiriam.
Criador de gêneros da literatura pós-moderna, como o cyber-punk, e adorado por gente das mais diferentes áreas da criação cultural como Tom Waitts, David Bowie, Patti Smith, David Cronenberg e Kurt Cobain, com quem fez parceria, Burroughs foi mais um dos visionários surgidos no início dos anos 60 que ajudaram a moldar a estética da arte contemporânea.
Sua vida conturbada – Burroughs matou a própria mulher em um acidente com arma de fogo – foi um ingrediente fundamental na sua escrita. Livros como Junky e Almoço Nu , sua obra maior, surgiram para confrontar costumes e colocar a contracultura em lugar de destaque. Mais do que um movimento comportamental, a geração de escritores encabeçada por Burroughs, Gary Snyder e Kerouac deixou um legado literário importante, que se tornou fundamental para entender as transformações sociais, políticas e comportamentais da última metade do século 20. Junky é parte fundamental dessa recente história.

3 comentários:

L Santos Lima disse...

Muito bom este texto sobre Burroughs.

Frederico teixeira disse...

adorei a pagina e o comentario sobre essa obra William Burroughs com certeza tem uma visão bem ampla sobre os "submundos" que existem na sociedade contemporanea

Leo Lobos disse...

Saludos desde Chile

un abrazo fraterno y gracias por tus palabras, lluvia en la playa pisadas en el viento

muito obrigado

Leo Lobos