quinta-feira, 23 de abril de 2009


MEREDITH MONK
Rainha da vanguarda americana e autora de trilhas para Godard

por Antonio Gonçalves Filho

Aos 64 anos, a compositora, cantora, cineasta e performer norte-americana Meredith Monk concluiu que a técnica vocal desenvolvida por ela para criar sofisticadas peças de vanguarda poderia desaparecer se insistisse na habitual atitude de ser a primeira intérprete do seu trabalho. Foi a morte de sua companheira, a coreógrafa holandesa Mieke van Hoek, em 2002, que a obrigou a fazer a si mesma uma pergunta: o que vai acontecer quando ela já não estiver mais aqui e como eternizar um trabalho fadado a uma ou duas performances para iniciados? A resposta foi a criação de um espetáculo para a posteridade, Impermanência, que ela traz ao Brasil, em novembro, para uma curtíssima temporada. Meredith Monk, alçada pelos críticos à estatura de John Cage, vem acompanhada de um grupo de músicos performáticos que se apresenta entre 13 e 15 de novembro, no Sesc Vila Mariana, numa iniciativa da Dharma Art. Por telefone, de Nova York, ela concedeu uma entrevista exclusiva ao Estado, em que falou não só de Impermanência como de sua influência sobre músicos pop, entre eles a cantora islandesa Björk, sobre religião e até sobre política.
Meredith Monk, que é budista e já compôs uma peça musical em homenagem ao dalai-lama (Vocal Offering, 1999), faz campanha para Barak Obama e crê que o candidato à presidência dos EUA é o digno herdeiro dos ideais humanitários de Martin Luther King. "Não quero nem mencionar o nome do outro candidato concorrente ou do nosso atual presidente, empenhado em destruir o meio ambiente", diz Meredith, definindo Barak Obama como uma espécie de herói da modernidade, "um homem confiável, exemplo para um mundo conturbado e carente de modelos".
Ela não disse que esse é um mundo maluco porque seria ofender os pacientes do Rosetta, internos de um hospital inglês com os quais trabalhou canções que integram o espetáculo Impermanência. Essa parceria com os pacientes do Rosetta foi um tributo à companheira de 22 anos, Mieke van Hoek, morta aos 56 anos, de câncer, que deixou registrado em fitas um trabalho de dança e canto realizado com eles. A compositora viajou para Londres e gravou novamente as canções dos insanos do Rosetta, batizando a canção de Mieke?s Melody Número 5, tema musical com pouco mais de 5 minutos que encerra o espetáculo Impermanência.
Meredith Monk define o trabalho de "muito simples" . Mais uma vez, explora sua técnica de extensão vocal e cria uma nova sintaxe para traduzir a perda da dor de entes queridos. Como o próprio título sugere, Impermanência lida com o conceito budista de um universo em permanente mutação, o que se aplica particularmente à linguagem multidisciplinar do espetáculo, que une dança, música, vídeo e performance. Sua imagem-síntese faz lembrar muito o teatro-dança da alemã Pina Bausch: dançarinos tentando se equilibrar em cadeiras, apoiadas apenas em dois de seus quatro pés, balançando para a frente e para a trás. Esse equilíbrio precário vai além da metáfora, mas a compositora evita a armadilha da palavra, preferindo concluir a peça com o som do piano interagindo com a voz humana, como em Dolmen Music, que lhe abriu as portas da Europa nos anos 1980, quando o produtor alemão Manfred Eicher , encantando com suas experiências vocais, transformou-a na primeira cantora contratada pelo selo ECM, até então dedicado à música instrumental.
Foi ouvindo Gotham Lullaby, uma das faixas de Dolmen Music, que Björk descobriu Meredith Monk. Assumidamente influenciada por ela, aprimorou sua técnica vocal e criou o próprio estilo. Há 20 anos, pouca gente conhecia a compositora americana, então uma performer experimental do gueto vanguardista nova-iorquino, até que Godard usou temas seus no filme Nouvelle Vague e os irmãos Coen incluíram peças musicais de Meredith em O Grande Lebowski, comédia sobre um desocupado que vive para jogar boliche e ouvir rock dos anos 1960. Naturalmente, nem Godard nem os Coen são sinônimos de cineastas populares, bem como Meredith. Ainda assim, são referências que atestam o prestígio da compositora no mundo do cinema, para o qual realizou e escreveu a trilha de Book of Days (1988).
Ao contrário de outros compositores que rejeitam a função, por considerar "menor" a autoria de trilhas, Meredith Monk revela adorar a composição de música para filmes. "Minha música é muito cinematográfica e gostaria muito de ter colaborado com meus cineastas preferidos, Tarkovski e Kieslowski, mas, infelizmente, já estão mortos." Porém, há ainda um autor muito vivo, Todd Haynes , com o qual ainda pretende trabalhar. "Vi seu filme Não Estou Lá e fiquei deslumbrada", diz, classificando o ensaio biográfico sobre Bob Dylan de uma "séria reflexão" sobre os meandros da indústria pop.
Meredith jamais se deixou apanhar pela rede das gravadoras nem tirou proveito da repercussão de seu trabalho junto aos artistas de apelo popular como Björk. Recentemente, ela tem recebido homenagens do mundo erudito, como a do violinista e compositor Todd Reynolds, que apresentou uma série de concertos com peças suas no New York?s Symphony Space. O maestro Michael Tilson Thomas não sossegou enquanto ela não compôs uma sinfonia para ele. "Foram cinco anos de resistência, mas não adiantou dizer a ele que com a voz você pode fazer tudo", conta a compositora. "Então, gastei cinco anos para pensar no timbre de cada instrumento e associá-lo a uma voz."
O registro fonográfico de Impermanência, observa, também levou algum tempo. É, segundo ela, apenas um "instantâneo" de seu trabalho. A compositora acredita mesmo na presença física do artista no palco, interagindo com os músicos e seu público. Em Impermanência, ela e seu Vocal Ensemble, criado em 1978, são acompanhados por um pianista, um clarinetista e até uma roda de bicicleta adaptada duchampianamente a instrumento.
Todos os vocalistas do conjunto de Meredith Monk são músicos respeitadíssimos. Theo Bleckmann e Katie Geissinger trabalharam, por exemplo, com Philip Glass, compositor minimalista da geração da compositora e uma das suas afinidades eletivas. A exemplo de Glass, ela também é autora de óperas, como Atlas (1990), e dirigiu alguns filmes "para serem ouvidos", dos quais Book of Days (1988) é certamente o mais conhecido. A ausência de uma história linear, tanto em sua ópera como em seus filmes, costuma incomodar o público não familiarizado com essa economia pós-minimalista. Meredith diz que não deseja ser hermética, mas sente que o artista contemporâneo está condenado à fragmentação cubista. A vida e a arte não são diferentes.

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