terça-feira, 12 de agosto de 2008



REFLEXÕES SOBRE JORGE MAUTNER

por Mario Schenberg


A crise espiritual aguda da juventude européia e norte-americana, que eclodiu massiçamente após a segunda guerra mundial, já se faz sentir também no Brasil. Há uma insatisfação profunda com as grandes estruturas ideológicas e religiosas do século XIX e da primeira metade deste século. O existencialismo sartreano teve o mérito de tentar formular alguns problemas candentes, mas não revelou uma real eficácia orientadora. Por outro lado a divulgação do Zen introduziu atitudes vitais fecundas, vindo ao encontro de certas aspirações ocidentais manifestadas no heideggerismo post-nazista e noutros pensadores europeus, como Wittgenstein. Com os beatniks, o Zen atingiu setores mais amplos da juventude, sobretudo entre os intelectuais e artistas. Mautner nos precipita bem no fundo dessa crise.
Indiscutivelmente uma das causas mais importantes da crise foi a estagnação da ideologia marxista depois de Lenin, que só agora começa a desaparecer, e com extrema lentidão. O marxismo, voltado no século XIX e na primeira metade deste século para os problemas econômicos e políticos prementes, não desenvolveu os pontos de vista fecundos dos escritos filosóficos da juventude de Marx. Alguns deles só vieram à luz nos últimos anos. Mesmo os cadernos filosóficos de Lenin continuaram desconhecidos no Ocidente até há pouco tempo. As implicações mais profundas da reavaliação de Hegel nos cadernos de Lenine ainda não foram bem compreendidas. Só agora os teóricos comunistas se dão conta de que, com Stalin, houve uma regressão do materialismo dialético de Marx para o materialismo mecanicista do século XVIII, em vez dum desenvolvimento do marxismo para a problemática filosófica, cientifica e humanista do século XX.
Inúmeros fatos indicam que nos aproximamos de um momento crucial da evolução da Humanidade, daquele fim da pré-história previsto por Marx, em que a existência do homem deixará de ser determinada basicamente pela necessidade de obter os meios materiais de subsistência. Desaparecerão as classes sociais e a diferenciação do trabalho manual e do trabalho intelectual. O progresso tecnológico permitirá a satisfação plena das necessidades de todos com um mínimo de trabalho. Modificar-se-á fundamentalmente a relação entre o homem e o trabalho e, assim, a própria essência do homem, em consequência da transformação da relação do homem com a natureza através do trabalho e dos homens entre si na vida social. E a guerra atômica?
O progresso científico vai chegando ao ponto em que o homem poderá transformar a sua própria natureza biológica e se aperfeiçoar, não apenas cultural e espiritualmente, mas até zoologicamente. Aproxima-se de sua efetivação prática o ideal do super-homem. A menos que a insanidade atual leve a nossa espécie ao extermínio numa guerra termo-nuclear.
Os homens de minha geração distinguem-se dos da geração de Mautner por terem crescido antes dos massacres de Hiroshima e Nagasaki. No tempo de minha juventude desconhecíamos a vivência das armas nucleares e da possibilidade de extermínio da Humanidade. Dessa época me sobrou um otimismo arraigado, que não se deixa dominar pela consciência racional da tremenda possibilidade. Compreendo que os jovens de hoje tenham uma vivência do Nada mais aguda e omni-presente. Falta-lhes o otimismo essencial. Talvez precisem afundar num irracionalismo sexual, como o da trilogia de Mautner, para esquecer a possibilidade aniquiladora.
Provavelmente a juventude brasileira, em geral, não possui uma vivência suficientemente poderosa do perigo atômico para marcá-la tão totalmente como as da Europa e dos Estados Unidos. Acredita que não seríamos muito atingidos numa guerra atômica. Assim surge a idéia de que o futuro será da América Latina, da África, da Ásia e da Oceânia. Na trilogia do Kaos encontramos de fato essa perspectiva esboçada.
Mautner vive intensamente a aproximação dum momento histórico crucial de transformação e síntese criadora, com as tremendas e arrebatadoras tensões espiri-tuais, sociais e políticas que a caracterizam. Apresenta-se como um dos profetas da Nova Era e até como messias (talvez com uma ironia peculiar). O seu Kaos seria a ideologia da Nova Era: integração contraditória e trágica de paganismo dionisíaco, comunismo transfigurado e cristianismo reformulado. Considera-se um continuador e superador de Marx, Nietzsche e Berdiaev. Mautner profetiza que o tédio e o sexo serão as notas dominantes duma existência fundamentalmente poética do homem libertado da tirania das necessidades materiais pela Técnica.
A problemática de Mautner gira em torno da contradição entre o irracional e o racional. Identifica muitas vezes o comunismo marxista com o racionalismo radical. Vê no sexo, na poesia e num misticismo dionísíaco da natureza (com um certo colorido cristão) a essência do irracional. Repele simultaneamente o comunismo racional e o cristianismo ascético e sentimental, anunciando um comunismo existencial místico e um cristianismo sexual dionisíaco. Talvez o seu Kaos possa ser simbolizado por uma síntese Dionísios-Cristo-Marx. Vê uma nova espécie de Eterno Retorno cósmico, num movimento espiral e ascendente como o do progresso dialético hegeliano-marxista. O Kaos conteria também um Caos, mas o transcenderia pelo progresso dialético, associado à contradição entre o irracional e o racional.
Apesar dos elementos cristãos que engloba, a religião do Kaos parece não incluir elementos de transcendência do tipo judaico-cristão. As formulações de Mautner são bastante fluidas e tornam difícil uma caracterização precisa. Provavelmente sofrerão modificações substanciais no futuro. A linha imanentista de Mautner corresponde a uma tendência muito generalizada no sentimento contemporâneo do Cosmos, que transparece até nas tentativas atuais de reformulação da dogmática cristã.
Mautner é eminentemente um poeta da água, no sentido da análise existencial de Bachelard. Na sua visão poética o Cosmos se revela como basicamente líquido. Há uma omnipresença obsessionante da chuva e do mar em sua obra. O próprio sentido de sexo de Mautner deriva do seu aquatismo, assim como o seu tipo de irracionalismo não voluntarista. A essência aquática da poesia mautneriana revela porque difere tão profundamente de Nietzsche, poeta do ar das alturas, embora tenha sofrido vivamente a influência do poeta-filósofo germânico.
Há uma grande afinidade entre Mautner e Jorge Amado. Ela se manifesta na poética aquática, na ênfase lírica dada ao sexo, na sensibilidade visual paisagística, no anarquismo e nas tendências socialistas místicas dos dois escritores. Diferem certamente quanto ao tipo psicológico, no sentido de Jung, e à formação. Em Mautner predominam as tendências à intuição e ao pensamento, enquanto em Jorge Amado sobressaem a sensação e o sentimento. Jorge Amado é filho duma sociedade semi-feudal; Mautner provém de um ambiente de cultura burguesa, com fortes influências culturais centro-européias.
A antiga cultura chinesa elaborou uma concepção dialética do Cosmos como luta e mútua metamorfose de dois princípios opostos, o Yang e o Yin, integrados na unidade do Tao. Essa imagem cósmica conserva certamente um grande valor poético e existencial. O Yin seria o princípio feminino, aquático, tenebroso; o Yang constituiria o masculino, seco e luminoso, construtor e destruidor. A oposição de Yang e do Yin, mais profunda que a do racional e do irracional característica do pensamento ocidental moderno, é conveniente para a análise da cosmovisão de Mautner.
Mautner vivencia autenticamente o Yin, mas não tanto o Yang. Sua síntese do Kaos é por isso menos profunda que a do Tao oriental. O comunismo marxista não se caracteriza por um predomínio do racional, como Mautner admite. O racional é apenas um aspecto do Yang construtor. Predomina no hegelianismo, mas não no marxismo. De um certo modo o marxismo deu maior conteúdo ao hegelianismo por um desenvolvimento mais completo do lado Yang e pela apreensão do aspecto material Yin da natureza. Provavelmente as maiores deficiências do marxismo atual se relacionam com uma captação ainda muito inadequada do elemento Yin obscuro e poético no Homem. Daí a inexistência de uma grande arte de inspiração marxista.
Deve ser superada, a insuficiência em Yin, para que o marxismo possa efetuar a síntese Yang-Yin em sua plenitude, nas condições históricas do momento atual. O dogmatismo stalinista amputou o soberbo desenvolvimento Yang de Marx no aspecto Yang destruidor, exagerando o aspecto Yang construtor.
A obra de Mautner é uma das mais estranhas e interessantes da atual literatura brasileira. Sua audácia de conteúdo e forma muito contribuirá para nos abrir novos horizontes de poesia e pensamento, levando-nos a uma participação mais ativa no debate mundial das grandes questões de nossa época.

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