domingo, 31 de agosto de 2008
CIDA MOREYRA CANTA E CANONIZA CARTOLA EM "AGENOR"
por Heron Coelho
"E atingir o ser da atriz…”
Assim finaliza o belo tema musical de Wisnik sobre Cacilda Becker e seu ofício. O ofício difícil ao qual Maiakovsky dissera em versos, e tantos outros escreveram na busca incessante de compreender esta força e vital necessidade de se expor à luz, por exigência da alma e da criação: o ator, o cantor – o artista.
Lembro-me de ter visto a cantora Cida Moreira interpretando esta canção, há pouco tempo em um show, e naquele momento, sob o foco de luz, ela se refletia em espelhos de sua própria identidade, persona vertida em personagem do canto, se doando e doendo para o público àvido – e o público sempre é ávido para Cida, que nestes últimos anos vem gravando de quando em quando, mas em constante atuação em shows.
Chegou-me às mãos, nesta semana, o disco Angenor (Lua Music, 2008), no qual a intérprete apresenta uma súmula do repertório de Cartola, que comemoraria seu centenário este ano.
Coloco o CD pra rodar e percebo que de imediato se dilui o intuito de “comemoração de centenário”, porque não há luto, mas sim a prova de que Cartola está e continua vivo, numa especie de disco-evocação-embornal com 16 canções, no qual a cantora reitera a alma brasileira de Angenor de Oliveira, o nosso velho e bom Cartola, gravado por Carmen Miranda e Chico Alves, aquele da Mangueira e que lavava carros, andou sumido e foi redescoberto por Sérgio Porto, voltando à tona e gravando discos com sua voz peculiar, e suas canções profundas e estóicas.
Estoicismo, sim, pode ser uma das palavras que defina a obra desse genial compositor, condição geracional dos anos 60, quando Hermínio Bello de Carvalho e Nara Leão, por exemplo, captaram-na ao registrarem sambas de um compositor que a sorrir pretendia levar a vida, em busca de uma alegria-alvorada colorida pelo sol.
Passados mais de 40 anos, e com tantos discos-tributos sobre o repertório do autor (quase todos sempre caindo no lugar comum do “sambista mangueirense de As Rosas não Falam“), a não menos estóica Cida Moreira nos apresenta um repertório que mescla clássicos como A canção que chegou (que abre o disco, e de pronto já diz ao que veio), além de Alvorada (esta em parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Cavalho), Acontece, e O mundo é um moinho, standards do compositor que aqui, em Angenor, recebem um tratamento especial, ao se verem exploradas como “canção” em sua essência, com a intérprete atenta ao texto e à música: cantora e atriz que é, Cida Moreira agora também se torna uma cantadeira de amor, leveza já sinalizada em seu penúltimo CD Uma canção pelo Ar (Kuarup, 2003).
Não entrevistei a cantora para perguntar-lhe de onde surgiu a idéia do disco. Porque, conhecendo sua obra e a forma com que se estabelece a relação entre a artista e a música, este encontro, Cida e Cartola, um dia, seria inevitável. Porque Cida lança mão da inteligência da cantora, na interpretação de clássicos, renovando-os, ao mesmo tempo que mobiliza sua atenção de atriz, ao nos tornar clara a intenção das letras, seus temas, suas profundidades sublimadas em leveza, suas tragicidades camufladas em palavras bem ditas-cantadas, fazendo do disco uma rapsódia de Cartola, uma radiografia de sua obra, num pequeno e discreto disco, elegante e nobre como o velho mangueirense.
Pérolas raras como Feriado na Roça, Nós Dois, Fim de Estrada, Senões e Sim aparecem como canções “feitas ontem”, numa abordagem moderna inédita nos dias de hoje: ao tratá-las como intérprete, Cida não as iconiza em arranjos e interpretações estriônicas, e por isso mesmo consegue trazê-las à tona, novas em folha, como numa primeira e definitiva gravação.
Estilista da música, como bem a definira Hermínio Bello, Cida Moreira e sua equipe de arranjadores e músicos conseguem obter um resultado mais que satisfatório, ultrapassando os limites esperados pela “máquina fonográfica”, priorizando o valor da canção em seu cerne (na confluência plena entre a melodia e a letra, música e arranjo).
Tudo resulta num roteiro que nos remete a um filme, a um grande romance moderno, com suas personas e personagens, em suas buscas e aflições, peitos vazios e autonomias represadas nesse moinho mundo moto-contínuo que o poeta Cartola platonicamente enxergava sob suas grossas lentes escuras.
Angenor nos chega como um presente secular e atemporal, feito por quem compreende que o ouvinte quer aguçadamente sentir, perceber e ao mesmo tempo se deslumbrar com a poesia da música, e a música da poesia.
Em um dos sambas, o desconhecido O Silêncio do Cipreste, em parceria com Cachaça, tem-se um vaticínio:
Todo mundo tem o direito
De viver cantando
O meu único defeito
É viver pensando
E viver pensando torna-se, aqui, uma dádiva nestes tempos sombrios atravessado por nossa música popular, pois o pensamento aliado à alma criativa de uma obra e de uma intérprete nos lega, neste Angenor, um disco-cânone, irretocável, que há de atravessar o tempo com sua luz “vacilante e incerta” para alguns poucos, mas iluminadamente ofuscante para os que compreendem a música como uma alvorada que surge com folhas a voar, brotando e minando sonhos passados que estão, e estarão, sempre, em nosso presente.
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2 comentários:
Meu irmãozinho Carlos Gurgel, das plagas natalenses (Estado que eu amo, me perco em suas belas praias...), Carlos Gurgel que teceu um elogio rasgado ao meu grande amigo e poeta Aldo Lins, Carlos Gurgel precisamos tomar uma à beira do meu querido rio Capibaribe, numa lua cheia, escutando esse Cd!!!
O tempo urge!!!
Grande Abraço!!!
ok,preciso voltar com calma por essa veneziana pernambucália, que tanto verte líricas paisagens, sim!!
certamente em outubro
abração
Cgurgel
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