terça-feira, 27 de maio de 2008


O MUNDO SEGUNDO CRUMB

Por Luciana Coelho

A voz calma e as frases bem articuladas mal fazem transparecer que do outro lado da linha está o responsável pelo traço sujo e pelas formas grotescas (muitas delas, efeito de drogas alucinógenas) que definem um dos trabalhos mais contundentes da cultura underground americana nas últimas quatro décadas.
Mas alguns minutos de conversa com o cartunista Robert Crumb são suficientes para perceber que toda a pulsão sexual, a ojeriza à sociedade consumista e as doses cavalares de cinismo e misantropia que permeiam sua obra seguem ali, borbulhando.
Aos 60 anos, 13 deles na França, Crumb parece ainda não ter se encontrado ("não me sinto bem em nenhum lugar"), fala com desprezo profundo sobre a cultura americana ("está pior do que nunca") e, sobretudo, sente muito medo do rumo político que os EUA tomaram ("fico ouvindo o que meus amigos contam, e eles dizem que só está piorando").
Nascido em 1943 em uma família de cinco irmãos da Filadélfia (sendo ele o do meio), Crumb começou a desenhar muito cedo, grande parte em razão da insistência do irmão mais velho, Charles. O hobby se tornou ganha-pão em 1962, quando se tornou ilustrador da American Greetings. Logo viriam os quadrinhos e uma profusão de personagens que marcariam a chamada contracultura americana: Fritz the Cat, Mr. Natural, Angelfood, Devil Girl...
A obra, vasta, ganhou um público fiel, a admiração da crítica e compilações que a alçaram ao status daquilo que Crumb mais despreza --o de produto cultural de sucesso. A seguir estão os trechos mais interessantes da entrevista, que tratou de política, drogas, família, sucesso e, claro, mulheres.

Como está a vida na França? Já faz mais de dez anos que o sr. se mudou, não?
Robert Crumb - Treze anos. Nós viemos para cá em abril de 1991. Minha mulher [Aline Kominsky] é quem estava mais animada em vir para cá, ela dizia que queria tirar nossa filha dos EUA.

Por quê?
Crumb - Porque ela não estava gostando do efeito que a cultura americana produzia na nossa filha. Nós já viajávamos com certa freqüência para a França nos anos 80, e ela estava se interessando cada vez mais, achava que a vida na França era melhor. Sophie tinha nove anos quando nos mudamos.

O sr. vê o efeito da mudança para a França sobre Sophie?
Crumb - Com certeza. Ela é uma pessoa que não tem uma identidade nacional específica, nem totalmente francesa nem americana. Ela tem as duas coisas misturadas, o que a torna outra coisa.

Melhor?
Crumb - Não sei se melhor, mas diferente. A energia, a relação com as coisas de dentro e de fora...

Hoje é uma vantagem não ter essa identidade americana?
Crumb - Sim, acho sim. É muito bom se livrar dessa identidade com os EUA. Eu também sempre fui uma pessoa alienada quanto a isso. Minha esposa também se sente mais confortável na França.

E o sr.?
Crumb - Eu não me sinto bem em nenhum lugar (risos). Mas a Sophie voltou recentemente para os EUA, ela passou uns tempos lá, e foi atrás de alguns amigos de infância. Muitas das meninas com quem ela foi à escola desenvolveram problemas sérios com drogas. Algumas já haviam passado por programas de recuperação...

Muito novas?
Crumb - Pois é... Você vê, drogas.. o problema que elas causam..

O sr. não parece ser a pessoa mais adequada para condenar o uso de drogas...
Crumb - (Risos) É verdade...

Tudo bem.
Crumb - É que aqui na França, ela usa haxixe, essas coisas... Mas lá são drogas pesadas, que aqui na França são mais difíceis de conseguir, como cocaína, crack... Essa cultura não é tão disseminada na França. Porque eu usei algumas drogas quando era mais novo, experimentei umas coisas, usei LSD, fumei maconha, essas coisas. Mas cocaína, anfetamina, crack... isso faz tanto mal... Nesse sentido é bom que tenhamos mudado para a França e ficado livres disso --quer dizer, mais ou menos, ela fuma haxixe, que é muito comum aqui, é uma coisa local, bem boa. Mas é o máximo que há aqui.

O sr. parece realmente feliz por ter criado sua filha longe dos EUA. Além da questão das drogas, há mais razões para isso?
Crumb - Nós moramos em uma cidade muito pequena, na França ainda há essa tradição familiar, as famílias são próximas, jantam juntas. Nos EUA, cada um come quando e onde bem entende.

É o individualismo, então?
Crumb - É, a Sophie reparou nisso... As pessoas vivem cada um por si. Os filhos são mais largados do que aqui. É claro que isso também proporciona resultados interessantes, porque você acaba tendo que se virar, criar. Na França, as crianças já imaginam que alguém vai resolver tudo por elas, e o governo é muito paternalista.

Isso é pior para o desenvolvimento da criatividade?
Crumb - De certa forma, sim. Os EUA são um lugar muito interessante em termos criativos, porque tudo é muito maluco lá. Há muito mais adolescentes interessados em desenvolver coisas criativas do que na França, por exemplo.

Provavelmente se não tivéssemos essa sociedade "maluca" nos EUA também não teríamos o trabalho do sr...
Crumb - (Risos) É possível, muito possível. É verdade.

E para o sr., qual a maior diferença de viver na França, além do aspecto familiar?
Crumb - Nunca penso nisso, mas há tantas... Para começar, a comida é muito melhor aqui (risos).

E as mulheres francesas?
Crumb - Não, de modo algum... Não é o tipo de mulher que eu goste, elas são muito pequenas, não têm coxa nem bunda... Não são meu tipo, definitivamente.

O sr. sente falta disso?
Crumb - Muita! Nunca imaginei isso, mas é a coisa da qual eu mais sinto falta aqui: das mulheres americanas.

Não é inimaginável...
Crumb - Bom, eu tenho que ir para Amsterdã se quiser ver o tipo de mulher do qual gosto. Ah, já me disseram para ir para o Brasil.

Provavelmente o sr. iria gostar.
Crumb - Dizem que a bunda da mulher brasileira é a mais incrível no mundo. Mas, voltando, há uma diferença básica entre a cultura francesa e a americana: a França não é tão obcecada por dinheiro. Eles sabem que há outras coisas legais, que nem sempre são "compráveis". E numa cidadezinha como essa, no sul...

Qual o nome da cidade?
Crumb - Não, não posso dizer, é segredo! Mas aqui o nível de ambição é muito baixo, as pessoas vão tocando seus negócios para sobreviver, e vivem bem, têm seu cantinho, podem sentar num café, é tudo seguro... Aliás, por isso é tão bom criar os filhos aqui. Nos EUA não daria certo.

Agora que Sophie é adulta o sr. pensa em voltar para os EUA?
Crumb - Não, não mesmo. Mudar é complicado, e eu não me sinto particularmente motivado agora para voltar.

Por causa do governo Bush?
Crumb - Ah, eu fico ouvindo o que meus amigos contam, e eles dizem que só está piorando, que há cada vez mais fascismo...

O sr. concorda?
Crumb - Bom, ninguém gosta do governo americano. Ninguém.

Essa onda de antiamericanismo, para alguém que não só está fora do país como era um "outsider" dentro dele, era previsível?
Crumb - Previsível? Bom, com certeza não me surpreendeu. Dava para ver que os EUA estavam ficando cada vez mais isolados e direitistas desde os anos [de Ronald] Reagan [1981-1989], e o povo americano freqüentemente toma decisões eleitorais erradas. O [Bill] Clinton [1993-2001] tentou pôr freio nisso, mas não completamente. Ele teve de passar boa parte de seus mandatos se defendendo de acusações de andar por aí com mulheres, essas coisas, e isso não deu tempo para fazer muita coisa. Aí entrou o Bush e as coisas ficaram fora de controle, isso é péssimo. As ambições deles [Bush e seus assessores] são terríveis. É a dominação mundial.

O que o sr. acha do discurso de Bush, pontuado por referências ao "Bem" e ao "Mal"?
Crumb -Ele está obviamente apelando para o mínimo denominador comum, está apelando para o eleitor ignorante, pois já desistiu do eleitor inteligente. E está atrás dos fundamentalistas cristãos. Aliás, já conseguiu. A coalizão cristã representa uns 15 milhões de votos de votos garantidos para ele. Mas há esperança. Espero que ele perca, porque teremos problemas se ele não perder.

O sr. acha que Bush vence?
Crumb -Não sei, não tenho idéia, ninguém pode dizer. Temos um jornal de língua inglesa que circula aqui, o "International Herald Tribune", onde uns caras pagaram um anúncio de página inteira outro dia pedindo o impeachment do Bush e do [vice-presidente Dick] Cheney, dizendo que eles tinham que sofrer impeachment, que o Congresso deveria usar de meios legais para expulsá-los do gabinete.

Não seria fácil...
Crumb -Não, nada fácil, imagine, fazer o Congresso enfrentar o Executivo. Eles não fazem isso.

O sr. acha que, em termos de política, a França está melhor?
Crumb - É, a França (suspiro)... Você vê, as pressões sobre a França, externas e internas, para que o país vá na mesma direção que os EUA e o Reino Unido, desregularize os negócios, privatize serviços públicos, mesmo estando na cara, ao olhar para os EUA, que isso não é bom para o cidadão comum, esse "fator Ronald Reagan". Mas é ótimo para quem tem mais dinheiro, e eles têm muita força política nos EUA. Não é assim na França, onde os socialistas e os sindicatos ainda são bem fortes. Quando o governo tenta por em prática qualquer uma dessas coisas há uma gritaria geral, protestos por toda a parte, greve no país inteiro, tudo pára (risos)...

No Brasil não é assim. (Crumb faz perguntas sobre o país, a economia e a popularidade presidente). Mudando de assunto um pouco... O sr. disse uma vez que tomou aversão pela cultura americana. Ainda se sente dessa forma?
Crumb - Mais do que nunca. A cultura americana está pior do que nunca, terrível. Tudo é tão vendido, tão comercial... É extremamente raro vermos algo realmente autêntico nessa cultura. Depois de um tempo, eu já me sentia como se estivesse sendo bombardeado permanentemente por comerciais, anúncios, logotipos de empresas... Para qualquer lugar onde você olhar, o que está na mídia, está tudo esmagado por comerciais... Há isso na França, também, mas pelo menos aqui há outras coisas também, além disso.

O que o sr. achou do modo como o retrataram no filme "Anti-herói Americano" (sobre Harvey Pekar, amigo de Crumb)?
Crumb -Eu vi o filme no ano passado em Nova York, com a minha mulher. Ela disse: "Se na vida real você fosse como aquele cara do filme, eu pediria o divórcio". Quem me conhece disse que não tem nada a ver comigo. Foi muito estranho assistir.

Mas o sr. gostou?
Crumb - É um filme bem feito. Achei a representação de Pekar e da mulher dele [Joyce Brabner] muito boa.
Vocês ainda são amigos?
Crumb -Sim, eu converso muito com ele por telefone.

O que o sr. e Harvey Pekar acharam de o filme ser indicado para o Oscar de melhor roteiro?
Robert Crumb - Foi inacreditável. Mas eu fiquei fascinado que esse cara que eu conheci em Cleveland e escrevia esses quadrinhos sobre ele mesmo esteja de repente recebendo toda essa atenção da mídia de massas. Harvey Pekar faz essas histórias há 30 anos, e o público dele sempre foi muito pequeno. Agora, de repente, ele está na mídia nacional. É fascinante.

O trabalho de Pekar não é muito divulgado fora dos EUA...
Crumb -Nem nos EUA. Ele deve ter vendido, ao longo dos anos, alguns milhares de revistas, e deve ter uns 2.000 admiradores, mas nada que chegue à mídia de massa. E aí vem esse pessoal de Nova York e acha que ele é um bom tema para um filme. Uma vez que um filme obtenha atenção da mídia nacional, tudo fica muito louco, isso tem um poder... Eu vi isso acontecer quando fizeram o documentário sobre a minha vida, e eu sou bem mais conhecido por causa do documentário. As coisas mudaram para um nível totalmente diferente. De repente, você é um astro de cinema.

Que tal a sensação?
Crumb -É incrível, mas muito estranha. Você entra em um restaurante e as pessoas te reconhecem, mas na verdade elas estão reconhecendo uma imagem que viram na tela. Elas acham que sabem tudo sobre você, porque a mídia tem esse poder, de colocar essa aura especial em você. Provavelmente isso se parece com o que acontecia no passado, quando as pessoas viam um rei, que era a figura poderosa e conhecida da sociedade. Só que agora isso acontece com qualquer figura da mídia. Você vê o homem do tempo num restaurante e já fica para os amigos "ah, eu vi o homem do tempo" (risos).

É isso, o sr. se sentiu como o homem do tempo (risos)?
Crumb -Pois é, senti. E você vê, essa coisa estúpida e vazia de ser uma celebridade da mídia é muito idiota. Não tem nada a ver com qualquer mérito pessoal que você possa ter. É só o fato de você estar na tela, mesmo que você seja um completo babaca.

Hoje essa indústria de celebridades anda produzindo mais do que nunca. Qual a razão que o sr. vê para isso?
Crumb -É assustador, porque as pessoas não passam tempo suficiente pensando como a mídia é poderosa. Você acaba sendo obrigado a desenvolver uma defesa crítica para se proteger disso e não se tornar uma vítima. É uma coisa desgraçadamente poderosa, que manipula a nossa consciência de modos que nós nem sequer percebemos direito. E faz parte de um fenômeno que existe há poucas gerações, mas está piorando.

Voltando para a política... Eu soube que Mr. Natural [o personagem mais famoso de Crumb] passou um tempo no Afeganistão... Depois disso, ele tem algum conselho para o presidente Bush?
Crumb -Mr. Natural (risos)? (falando pelo personagem): "Sr. Bush, vá se sentar numa caverna numa montanha e passe uns dez anos sozinho pensando no que você fez". E ele devia ser deixado sozinho numa caverna, e todo dia alguém deixaria comida para ele na entrada, para que ele pudesse pensar melhor nas coisas.

Dez anos seriam suficientes?
Crumb - O Bush não é o maior problema, pois ele é basicamente um fantoche, não o cérebro.

E Mr. Natural tem conselhos para os assessores de Bush?
Crumb -Aí já não sei, é tanta gente... Por trás dos assessores há gente como Cheney ... Sabe, o Cheney é um cara realmente mau, um personagem sinistro e diabólico. E atrás de tudo isso há uma série os "think tanks", essas instituições com esses caras que ficam lá sentados, pensando em políticas, esquemas, estratégias de dominação mundial... Eu li um livro incrível recentemente, chamado "The Grand Chessboard" ["O Grande Tabuleiro de Xadrez"], desse cara, [Zbigniew K.] Brzezinski, que esteve no gabinete do Reagan... Esse livro basicamente expõe a estratégia de dominação mundial na qual essas instituições trabalham... Não é um segredo, mas é deprimente ler sobre isso. O autor foca a Eurásia, ele diz que é a chave para a dominação mundial. Uma vez que ocorra [a dominação] na Ásia Central... Afeganistão, Uzbequistão, Cazaquistão... esses países que têm muitos recursos naturais. E os EUA querem ter certeza de que controlam eles, essa região. É essa a estratégia para o futuro próximo, os próximos 20 anos. Dominar a Ásia Central.

A Guerra do Iraque é um passo para isso?
Crumb - Com certeza faz parte dessa estratégia. Há linhas de comércio muito importantes lá, comércio de petróleo pelo Iraque, pelo Irã, para a Rússia e a Ásia Central... Muita gente acha que nós precisamos do petróleo, que os estoques de petróleo estão acabando e nós precisamos dominar isso, que os EUA podem controlar o petróleo... Mas não é isso. É a dominação econômica que eles querem. É uma estratégia cruel e errada, penso eu... Ao invés de trabalhar para a cooperação mundial... Mas gente como o presidente nem deve achar que isso é possível, ele acha que os asiáticos e os russos nem sabem fazer negócios, que se os EUA não dominarem haverá um caos mundial.

Tudo é preto e branco?
Crumb - É, e eles acham que estão tirando o mundo do caos. Já houve isso antes, no Império Romano. A Pax Romana.

E depois, o império caiu.
Crumb - Sim (risos). Funcionou.

segunda-feira, 26 de maio de 2008



MORRE O POETA PIAUIENSE H. DOBAL

O poeta H. Dobal — ou, no registro civil, Hindemburgo Dobal Teixeira —
nasceu em Teresina, em 1927. Advogado, foi funcionário do Ministério da Fazenda. O poeta publicou um bom punhado de livros, mas os críticos consideram sua primeira obra, O Tempo Conseqüente, de 1966, um dos momentos mais marcantes de seu trabalho.
Sobre esse livro, Manuel Bandeira escreveu: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidade, mas rica do sentimento profundo visceral da terra”.
De fato, o que chama a atenção na poesia de H. Dobal é essa fina emoção lírica construída, paradoxalmente, com um discurso árido, firme, substantivo. Mas não se pense que o termo árido, aí, tem a ver apenas com o agreste da região natal do poeta. Existir é árido, em qualquer quadrante, em qualquer estação. É o poeta quem avisa, de olho na paisagem de Brasília:
Dói o verão
esta pele seca
estirada
sobre os ministérios vazios.
A poesia de H. Dobal é como um grande pássaro que estende as asas sobre o campo e a cidade. Vai das cabeças d'água do rio Surubim e do chão das vacas e ovelhas até o mármore morto dos viadutos. Uma poesia que se debruça sobre o esporte amargo de viver e sabe que o destino sempre leva vantagem. E a cinza das roças é a mesma que ameaça os monumentos.
Estranho — e injusto — é que um poeta como H. Dobal tenha uma obra praticamente desconhecida. Não há livros do poeta no mercado. Descobri que a Livraria Corisco, de Teresina, publicou em 1997 uma poesia completa de Dobal. Mas nem a própria editora tem mais essa obra. Ainda há, parece, uma edição de O Tempo Conseqüente, também da Corisco. Só que a edição não é distribuída nacionalmente. Mandei um e-mail para a editora, na tentativa de obter informações mais precisas. Não obtive resposta.
Quem me chamou a atenção para o trabalho de H. Dobal foi o poeta Donizete Galvão. Depois que Galvão me deu a dica, li na internet alguns poemas de Dobal e fiquei impressionado. Em seguida, observei que Manuel Bandeira, em 1964, já o havia incluído em sua Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos. Bandeira foi também o autor do prefácio de O Tempo Conseqüente.

Carlos Machado

domingo, 25 de maio de 2008



O AMOR


o amor pode vir pelas calçadas
pode pulsar escondido num papel crepom
o amor pode estar encolhido
por entre os seios de uma mulher
que baila no meio de um palco
tão cheio do seu chão
o amor é um canavial
uma fração que nossos olhos ferem
e que depois se aquecem e se esquecem
o amor?
talvez em cima do campanário onde escolhestes teus lustres e lestes?
um pouco de um fruto espúrio?
um cio de uma prosa que murchou?
ou dos cavalos de tróia que trotam descarriladamente
por cima dos nossos fósseis?
assim o amor não presta
é como uma serpentina
que só colhe nossos passos e some
assim
o amor não faz pendão
uma tissagem?
uma pluma?
uma estalagem?
ah, o amor
que me rouba silêncios
e eu me arrasto pela fronte que me destes
o amor
pode ser o umbral da estação
ou o fruto que carregas na escuridão.

Cgurgel

sábado, 24 de maio de 2008

I'm not the girl who misses much ( pipilotti rist )

Lenka Clayton - "QQQQQ" - excerpt ( A -- Because )


MINHA RUA


Quando sinto falta das manhãs vou até minha antiga rua. Na rua da minha infância as manhãs estão bem guardadas e são para sempre. Há algo mágico no ar que vai mais além das novas casas agora comerciais ou das velhas casas residenciais agora reformadas com muros altos e grades.
Minha rua é ainda para mim sem grades e com a mangueira da casa de Dona Zefinha, o jambeiro da casa de Dona Geralda, a palmeira na casa de Seu Manel, a goiabeira na casa de Dona Sílvia, o pé de cajá-manga na casa de Seu Zé Lima. Todas essas árvores continuam lá, mesmo que algumas dessas árvores tenham sido cortadas. Os personagens continuam vivos. Mesmo os que já se foram.
Há um vento na minha rua que continua soprando do mesmo jeito. Levantando as folhas das árvores no chão. Há sombra na minha rua. Há o sol das manhãs. Há a siesta da tarde na quietude da rua escondida, oásis perdido por entre avenidas ao redor. Há a chuva nas bicas e gostosos banhos cinematográficos. Para mim a Rua Mossoró ao lado continua de terra e quando alaga ainda espero com meus irmãos e nossos amiguinhos os carros passarem para que criem ondas para nossas pranchas.
Estou louco que chegue julho quando entrarei de férias e poderei sentir melhor as manhãs. Meus pais irão viajar e receberei cartões postais. Eunice vai cuidar da gente. Vamos fazer cooper bem cedo com nosso avô na praia do Forte. Estou louco também que eu chegue logo na adolescência porque poderei ir a pé até a praia dos Artistas para ver a galera pegar onda. Milton Nascimento pode estar lá. É só estalar. E eu estou de novo na minha rua, esquina de tantas lembranças, pensamentos cheios de tanta luz. "Vale mais a força do pensamento". Continuo lá. Continuo indo para a casa de Délio pegar discos emprestados todos os dias e ler suas poesias. Luís Emílio continua tomando caldo de cana em cima do muro com sua namorada. Seu Zé Lima continua com seu admirável Simca Esplanada entrando na rua buzinando com as suas calças lá em cima.
Amanhã é feriado e vou passar o dia na minha rua adormecendo o tempo. Vou logo cedo, bem cedinho, para aproveitar a manhã, "pois na força da manhã posso ser muito valente, pra vencer o espaço e me achar"...


Carito - "Poetas Elétricos"

sexta-feira, 23 de maio de 2008





LINHA DO TEMPO

assim como um assum
preto eu vou
por entre fornalhas
porcarias
lixeiros
e escarros
por entre monte de bostas
de anarquias fuziladas
por entre pestes
postes apagados
e o meu folhetim
que cobre o meu corpo nú
vou
que ainda me volto
como um assum
um assim
assado
bem passado
cozido
tão mal estado
de tão pouca ambrosia
que de mim pariu
assanho
tão tamanho
de uma obra de fezes
feixes de merda
um tornado de nada
um espécie
troglodita assum preto prestou
restou como do passado que cinge
que me parte
e que me espatifo entre poucos
e traidos mestres
que do chão que habito
só me restou descartes.

Cgurgel

quinta-feira, 22 de maio de 2008



ÉPICO "CHE" DETALHA A VIDA E A MORTE DO GUERRILHEIRO

Por Mike Collett-White

Benicio del Toro representa o guerrilheiro argentino Ernesto "Che" Guevara num épico de quatro partes que expõe primeiramente o papel de Che na revolução cubana, antes de alongar-se sobre sua campanha guerrilheira e morte na Bolívia.
Steven Soderbergh dirigiu "Che", que é falado em espanhol e possivelmente chegará aos cinemas em duas partes intituladas respectivamente "The Argentine" e "Guerrilla". Mas o diretor disse que também gostaria de oferecer ao público a oportunidade de ver as duas partes juntas.
Soderbergh, que recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1989 por "Sexo, Mentiras e Videoteipe", disse que é fascinado pela personalidade de Guevara, que tornou-se símbolo da revolução em todo o mundo.
"Para mim, Cuba é uma questão menos interessante que Che", disse o diretor a jornalistas na quinta-feira em Cannes, onde "Che" é um dos 22 filmes da competição principal.
"Basicamente, acho que Che constitui material cinematográfico maravilhoso. Ele teve uma das vidas mais fascinantes que consigo imaginar no século passado."
Originalmente Soderbergh pensou em fazer um filme apenas sobre a tentativa de Che de levar a revolução à Bolívia, mas então achou que o público precisaria saber o que aconteceu em Cuba antes disso.
"Para entender por que Che pensou que uma vitória de seu grupo seria possível na Bolívia é preciso ver o que aconteceu em Cuba, porque havia uma semelhança entre as apostas em jogo."
Para o premiado com o Oscar Benicio del Toro, nascido em Porto Rico, representar o idealista idolatrado não foi fácil.
"À medida que fui pesquisando o personagem, fui ficando cada vez mais receoso de me aproximar dele. Eu não parava de aprender", disse ele.

terça-feira, 20 de maio de 2008

MOTE DO NAVIO

segunda-feira, 19 de maio de 2008




BROTHERS OF BRAZIL

Supla e João Suplicy conversam com o Guia da Semana sobre o Brothers Of Brazil, projeto que une a bossa nova ao punk rock

No pequeno palco do Dublin, elegante pub irlandês localizado na Zona Sul de São Paulo, Eduardo Smith de Vasconcelos Suplicy, mais conhecido como Supla, o Papito da primeira e antológica edição da Casa dos Artistas, da banda Tokyo e do hit Japa Girl, pede mais retorno para seu microfone. É na passagem de som que o dono das madeixas mais espetados da música brasileira mostra-se atento aos mínimos detalhes técnicos, da afinação de sua bateria à trilha sonora que abre a apresentação.
Checados todos os pormenores, Supla e seu irmão, o cantor, violonista e compositor João Suplicy, passeiam com desenvoltura pelo repertório do Brothers Of Brazil, projeto que concilia a bossa nova de João, o punk rock de Supla e mais um bom número de ritmos em uma sonoridade vigorosa, já experimentada em endereços tão diferentes quanto Paris, Londres e Capão Redondo, periferia de São Paulo.
Com apresentações agendadas em diversos cantos do Brasil e da Europa, a dupla bateu um papo com o Guia da Semana sobre a repercussão positiva do projeto.
Guia da Semana: O nome do projeto Brothers Of Brazil foi dado pelo Bernard Rhodes, ex-empresário do The Clash, e vocês contaram que o Glen Matlock esteve em alguns shows. Ou seja, em matéria de punk a parceria está bem encaminhada?
Supla: Isso mesmo. Conheço o Bernard há muito tempo, e o Glen ficou curioso para ver como funcionava ao vivo. Ele gostou e até voltou no dia seguinte, o que para mim foi uma honra. Mas vamos olhar para o futuro agora.
Como o projeto está sendo recebido no Brasil e na Europa? Quais são as diferenças que vocês têm notado entre os dois públicos?
João: Eu sinto que a galera está recebendo de uma forma quente, tanto no Brasil quanto na Europa. O nosso termômetro são as reações durante e pós o show. Aqui no Brasil, muita gente chega falando que não sabia o que esperar e se surpreende com o resultado da mistura. Na Europa e nos Estados Unidos, como as pessoas nunca ouviram falar de nós, comentam muito a originalidade do projeto.
Como funcionou o projeto de gravação? As sugestões partiam de ambos os lados sem maiores divergências?
João: Existem várias divergências, mas nós encaramos isso de uma forma positiva. É desse atrito que sai o fogo.
Quando mais jovens, vocês ouviam um os discos do outro, ou era mais cada um na sua?
Supla: Como o João era muito pequeno, ele escutava o que já tinha em casa, depois seguiu o seu próprio gosto musical.
Já faz algumas décadas que a bossa nova dialoga com os mais diversos ritmos, assim como o punk, que sempre casou bem com outros estilos. Vocês chegaram a crer que a união desses dois gêneros seria difícil de acontecer?
Supla: Acreditamos que todo tipo de música que a gente faz é música de coração, coração de leão, coração de dois irmãos. Não nos prendemos em punk, bossa nova ou qualquer gênero musical. O importante é ter uma boa melodia e uma letra que passe algum tipo de emoção.
No show, você se encarrega da bateria, um talento que o público em geral não conhece. A apresentação reserva mais alguma surpresa?
Supla: Tocar bateria e cantar ao mesmo tempo já é bastante, mas também toco violão e percussão. Dependendo do lugar, o João larga o violão e vai para o piano. Outras surpresas deixamos para quem for ao show.
Ao menos em São Paulo, vocês têm tocado muito em pubs, o que acham desse ambiente? E na Europa, onde estão rolando os shows? Também em pubs, bares e pequenos clubes?
Supla: Tocamos em todos os lugares, inclusive num botequim no Capão Redondo. Esse vídeo, aliás, pode ser conferido no nosso MySpace. Achamos que seria legal tocar por lá, pois ninguém pinta lá para mostrar o trabalho. Do Capão, embarcamos no dia seguinte para Paris. Em junho, vamos tocar em dois grandes festivais na Europa, ainda não podemos contar quais, mas logo será divulgado. Quantos aos pubs, eu pessoalmente gosto.


PARIS, LONDRES, NOVA YORK, RIO E CAPÃO REDONDO ESTÃO NO ROTEIRO DA DUPLA

Você acredita na expressão bossa nova para exportação , muitas vezes lançada pela mídia de forma desdenhosa?
João: Acredito que existe a tal bossa nova para exportação, mas não a identifico com o Brothers Of Brazil.
A maneira de cantar do Supla, da mesma forma ligeira como encara as canções de rock, deu uma cara diferente às faixas, o que vocês acharam do resultado final?
João: O próprio temperamento dos dois funciona como química para o resultado final, e temos trabalhado bastante. Gostamos do que temos até agora e não paramos de compor.
(Para Supla) O que você mais admira na bossa?
Supla: As melodias, tempos e o jeito de cantar de alguns interpretes como o João Gilberto.
(Para João) E o que você mais gosta no punk?
João: Da atitude.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

FLAMENCO GUITAR AND DANCE




ANANÁS


n'algum lugar
entre
novilhas e matilhas
reside o desdém

como cara
de um
hipócrito gatilho

versículo
que colhe
por entre golpes & goles

textículos
de uma pecha
de cálices & cólicas

n'algum lugar
como desmando
do ancho
tudo está
entre o tacho & o tacanho

mesmo que assim
tão medro
essa graxa
pirraça

n'algum lugar
como sendo

entre nós

colápso
como colosso & colostro

cegos cacos & nacos
cópulas de cúpulas
entronizam
périplos de réplicas

entrudo
entre tudo
e entre toldos
fornicam
farinha do mesmo asco
mescalina
tudo pasto.

Cgurgel



GIL FAZ SEU ÁLBUM MAIS "TECNOLÓGICO" E QUEBRA HIATO DE 11 ANOS

Por Fernanda Ezabella

O músico-ministro Gilberto Gil lançará seu primeiro álbum de canções inéditas em 11anos no próximo mês, "Banda Larga Cordel", mas as faixas já estarão disponíveis na versão "streaming" na Internet na quinta-feira.
O cantor e compositor falou por mais de cinco horas, nesta quarta-feira, com mais de 60 jornalistas brasileiros e estrangeiros, em uma "coletiva virtual" pela Internet.
Gil, 65 anos, afirmou que está se sentindo muito mais livre como músico graças à idade e ao sentimento de satisfação com o trabalho no Ministério da Cultura.
"Estou entrando nos últimos quarteirões do bairro da minha vida. Então isso dá uma tranquilidade, porque eu tenho que dialogar com a consciência da plenitude", disse Gil. "Eu estou ficando velho ... a idade vai pressionando você a se estabilizar com a essencialidade da vida e também da morte."
O músico afirmou que passou os "últimos quatro, cinco anos sem deixar espaço para inspiração, para o desejo poético", devido ao acúmulo de trabalho na pasta da Cultura do governo.
"Mas meu tempo como ministro daqui a pouco acaba e estou fazendo minha reentrada", disse. "Estou fazendo esse disco para dizer, 'olha aí, tô de volta, compondo'."
"Banda Larga Cordel" surge após "Gil Luminoso", de 2006, com canções regravadas. O último disco de inéditas foi "Quanta", de 1997. O novo trabalho estará disponível nas lojas em 17 de junho, assim como as faixas individuais na Internet.
A partir de quinta-feira, o internauta pode acessar às canções para "streaming" --apenas para ouvir e não gravar ou armazenar no computador-- no site Sonora (http://sonora.terra.com.br).
"Banda Larga Cordel" traz 14 músicas, incluindo apenas uma regravação, "Formosa", que faz parte dos quatro sambas do novo CD. Originalmente as canções seriam para um disco só de sambas, que Gil chegou a anunciar no passado, mas que não aconteceu.
"Passei uns quatro anos cantando esse samba ('Formosa') em casa, no estilo a la João Gilberto, aprimorando, fazendo minha leitura", disse, acrescentando que os outros sambas são "Amor de Carnaval", "Gueixa no Tatame" e "Samba de Los Angeles".


TECNOLOGIA PARA COMPOR E GRAVAR

Segundo Gil, esse é o disco "que mais tem esse mundo de contribuições tecnológicas", seja no ato de compor ou gravar."Esses instrumentos novos, o computador, os gadgets digitais, tudo isso teve fortemente presente agora neste disco, como ainda não tinha estado em discos anteriores", disse.
Gil contou que a faixa "O Oco do Mundo", por exemplo, teve a letra composta enquanto viajava pela Espanha. Mas, no lugar de musicar com seu violão e gravador quando voltou para casa, ele o fez com seu filho Bem e seus programas digitais.
"Ele programou uma fórmula rítmica muito forte com uma máquina de ritmo que ele comprou nos Estados Unidos. Aí eu fui fazendo um pouco a recitação daquele poema aqui e ali, fui colocando notas musicais e acabamos compondo", disse.
Há duas canções que surgem como homenagens neste novo trabalho. "A Faca e o Queijo", estilo balada americana e blues, é para sua mulher, Flora. E "Canô" para a mãe de Caetano Veloso e outros centenários como Oscar Niemeyer e Dercy Gonçalves.
O disco também é o primeiro de propriedade de Gil. Ele fez um acordo de distribuição com a Warner e juntos vão criar "um recanto de recombinações criativas".
"A gente vai disponibilizar vozes das canções, partes instrumentais das canções, eventualmente regravações alternativas, para que as pessoas possam sim usar tudo", disse.
Gil sairá em turnê em junho e julho para 25 shows em oito países, passando pela América do Norte e Europa. Apresentações no Brasil apenas a partir de agosto.

segunda-feira, 12 de maio de 2008




AFETO


do que em mim rebuscas?
um pouco da solidão soturna
ou desses meus medos mundanos?

do que em mim te ofusca?
o que do inverno te rusgas?
como febre que arrasta os pêlos?

como uma calçada da lua
onde se encontra com os lagartos
que te cerzes?

ou da espátula que feres
como invadindo quintais e chinelas
como uma vela que tece com o teu suor
o sangue de quem te deixou louquaz?

ou da súplica íngreme
que desmaia por entre dentes e cadeados
a opulência de um varal sórdido?

e fico enfim tão cool
como quem liga ao que restou
do que ficou despetalado

desse teu coração cítrico
atalho de um espinho tão triste
por ti plantou em mim
assim cipreste.

Cgurgel

sábado, 10 de maio de 2008



Reproduzo aqui, texto meu publicado na coluna do poetamigo Mário Ivo, e que ele, com todo o seu elenco de elogios, me levanta a crina da sina verbolingual

CULTURA 100508 sábado

ADIVINHE QUEM VEM PARA O CAFÉ-DA-MANHÃ: CARLOS GURGEL

Gurgel dispensa apresentações. Qualquer tentativa de resumi-lo é inválida. Qualquer resumo, tosco. Qualquer arranjo, fugidio. Percorre as margens do Ryo Grande há tantos sóis quanto de luas são tecidos os encantos e desencantos desta província. Carlos Gurgel nasceu pra brilhar – este poderia ser seu slogan, como o do sol maiakovskiano – e se reinventa a cada dia.


FORTUITA PRESSA
final dos anos 60. rua ezequias pegado no tirol. papai e mamãe organizam festa de fim de ano. os poetas da cidade comparecem. lá estão: newton, berilo, dorian, paulo de tarso, sanderson, zila mamede, luís carlos & lêda, celso & myriam, nei, e tantos, tantos outros. eu, 12 anos. primeira poesia: “o mundo é uma casa ambulante/ cheio de precipícios/ de geração à geração/ com obstáculos difíceis”.
ficava tamborilando na mesa da sala, refazendo “trio los panchos” e glen miller.
papai me chama e pede uns poeminhas meus. e eu, de uma indisfarçável timidez, aos poucos me vi pronunciando rascunhos e dialogando com todas aquelas pessoas escolhidas, ímpares, integrantes de uma alma preciosa.
tinha uma ala mais medonha que lá também ia: walter von berbe (o george “hare krishna” harrison natalense), dailor varella com seus calipsos tropicalistas, e miguel cirillo, afiando seus uivos vivos.
assim me fiz ver. nesses encontros da proximidade com letras, poemas. e com figuras extremamente humanas demais. medonhamente interessado no que elas falavam e escreviam.
e, do universo cascudiano, resguardo um estoque inesgotável de síncopes e alumbramentos, fruto da insistente e incorrigível simpatia que meu pai revelava ao me levar por inúmeros anos ao casarão onde diuturnamente a alma do povo ressuscitava e sorria.
e tinha também, a galeria “vila flor”, de augusto severo e lúcia, no bequinho, no centro da cidade. onde aconteciam vinhos, violões, banquinhos e versos. espaço aberto como declaração de festivas linhas e sombras.
e o “cine clube tirol”, de moacy cirne, anchieta, palocha, e tantos, tantos outros.
como também as domingueiras no “rex”, focos de trocas de gibis e filmes. no convite de luís carlos guimarães, que passava lá por casa e íamos assistir épicas e tétricas películas.
assim, no “marista”, a formação do “the functus”, e a musicalidade que germinava ensaios e festivais. o grupo, ivanildo, napoleão, glaucus, adroaldo, luis neto, joão batista, pirú, tão irmão e criativo, ganhava público e prêmios.
minhas letras musicadas por eles: “o abalroamento da vagonete contra uma senhora moça”, “black-out”, “missa biológica/transe comunhão/sacrossanto”. e outras.
na “explosesc”, therezinha de jesus e amaro lima já se contorciam com a “era de aquarius”, e desbundavam por entre uma platéia céptica e entranhadamente saudosista.
foi em um desses festivais, que cansado de ficar na platéia, decidi que no palco estaria. o grupo se classificara com a peça “missa biológica”. na véspera, tive a idéia de me confessar ao padre, e fui lá na igrejinha de petrópolis. quando ao término da confissão, no descuido do sacerdote, afanei turíbulo e paramentos e pernas para que te quero.
à noite, no camarim, sem que ninguém soubesse, me paramentei e no lugar do incenso, pus maconha. lembro que na comissão julgadora, em frente ao palco, lá estavam anchieta fernandes e tantos outros. e aí adentramos ao palco, cada um, tal qual figura do jeito que quisesse.
o estopim da música com a letra, a expressividade de todos, a platéia animada. foi quando acendi a dita cuja e me dirigi aos componentes da comissão. passava para eles a sensação de um olor nunca antes consagrado.
ao final da apresentação, como celebrando tamanha sandice, todos os integrantes da comissão empunhavam a tabuleta que personificava o número dez.
depois aconteceu o “festival do forte”, “galeria do povo”, a minha dependência toxicômona, desbunde dos anos 70, muito rock, sons lisérgicos. amigo de gualberto, miguel, fon. próximo de walflan, siqueira, bosco “tripa”, “black-out”.
isso tudo são amálgamas. frontispícios. uma leva de estrelas e brilhos incandescentes. como uma chuva do bizarro onde habita o “spleen”.
como o “grito primal” do janov, e do lennon, em “mother”. uma boléia onde raspo e cabe, o ladrilhar de tontas coisas.
nesse jardim onde adubo e me tacho, floresce como uma tétrica viagem, o sentimento do ensejo vasto. do zen, yoga, integral food.
como elixir do rock doido e estrebuchado. como um interstício de mim e do que não gosto. como flagelos, flocos, fotos tão recentes e tão passadas. um dilúvio que me faz ler tão madrugadoramente. tão beatnik poema. tão desmesuradamente órfão de meticulosidades vazias e fósseis.
hoje, tenho próximo, como parceiros sonoros, a estampa de valéria, a instingante pessoa que é simona, a fortuna da criatividade do luis, a tonitroante beleza sonora de krysthal.
sim, música e poesia são indissoluvelmente parceiras.
como uma trupe que acelera e desfaz ritos e pit-stop. hoje, talvez, mais do que ontem, celebro o sol e o céu tal qual arte.
filho de um desastre de vozes, como espelho e espanto. cantochão no palco onde fervilho o brilho de uma trilha. onde o meu poema esquarteja no coração da noite que me guia, os segredos dos dias, como o tear de um rascunho de rotas.
letras, parágrafos, passárgadas. discípulos de uma sinecura de asas, que me lembra uma cidade adormecida pelas suas órbitas, esquinas.
eu vou, parceiro do que o meu silêncio rumina.

PROSA
“Que existam magias negras, trevas e ocultismos para que sejam ainda mais nítidas as vitórias da claridade.”
Almada Negreiros
Obras completas

VERSO
“eu, de repente,
inflamo a minha flama”
Maiakóvski
“A extraordinária aventura...”

sábado, 3 de maio de 2008

MANUEL BANDEIRA - " O HABITANTE DE PASSÁRGADA "

quinta-feira, 1 de maio de 2008





TUDO POR UM FIO
( o poetamigo Carito foi lá nos assistir, e escrevinhou com sua peculiaríssima maneira de ver, o que sentiu )


O percussionista Cacau Arcoverde tirou melodia de um fio nem sei de quê. O músico Anand Rao fez rock and Rao. Explico: Anand Rao teve atitude rock ao aceitar o convite do poeta Carlos Gurgel para a performance do desconhecido, o que já é uma marca de Anand - ele é conhecido no Brasil pela sede de improviso.

Conversando com Rao ele confirmou minhas impressões: dá um tom de estranheza atonal à fonte bebida em clubes de esquinas, com uso e abuso de estudos de harmonia a serviço do inusitado. Tão inusitado como o som do fio de Cacau Arcoverde, como os (des)caminhos da poesia de Gurgel que atalhavam e talhavam com os de Anand e Cacau. Tudo foi construído e desconstruído não por acaso e por acaso ao mesmo não-tempo. Não por acaso que essas forças estiveram juntas sob o título de TRIUMVIRADO. Por acaso as performances pareciam ir e vir, com a sensação de não sabermos onde termina uma e começa a outra, como nos velhos vinis progressivos-experimentais setentistas.

Provocar sensações, despertar sentimentos, talvez tenha sido isso mais que tudo no evento dessa noite. Mais que a pouca gente, mais que o sumiço do mesário que não voltou em tempo de corrigir uma falha técnica. Mais que a falha que pareceu performance para alguns. Tudo tão rápido, parece até que não aconteceu. Mas que nada. Mais que nada, com o ponto no i. Com o i fazendo ponto na esquina. Como medir o tempo de um espaço? De uma esquina intensa, diversa, mesmo quando e talvez por isso - adversa. 20 minutos? E o tempo que fica e não sai mais do nosso espaço interior?

Anand disse a Gurgel que se tivesse dado muita gente nesse evento experimental ele desconfiaria da qualidade de seu trabalho. Um clube sem saída, cuja entrada é o preço da contramão? Os a(s)tro-pêlos? Gurgel estrela em cio, Anand estrela em brio, Cacau estrela em fio... Tudo por um, e todos por um. Fio da navalha-me Deus! O corte está lançado! No céu da boca da noite: devora-me e eu nem te decifro...


Carito
"Poetas Elétricos"